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quinta-feira, 24 de março de 2011

O ABRIDOR DE LATAS

Leia com atenção o texto O abridor de latas. As dez
questões que se seguem, referem-se a seu conteúdo.
O abridor de latas
1[1]
Pela primeira vez, no Brasil, um conto escrito
inteiramente em câmera lenta.
Quando esta história se inicia, já se passaram
quinhentos anos, tal a lentidão em que ela é narrada. Estão
sentadas à beira de uma estrada três tartarugas jovens, com
800 (oitocentos) anos cada uma, uma tartaruga velha com
1200 (um mil e duzentos) anos, e uma tartaruga bem
pequenininha com 85 (oitenta e cinco) anos. As cinco
tartarugas estão sentadas, dizia eu. E dizia-o muito bem pois
elas estão sentadas mesmo. Vinte e oito anos depois do
começo desta história a tartaruga mais velha abriu a boca e
disse:
- Que tal se fizéssemos alguma coisa para
quebrar a monotonia desta vida?
Formidável! - disse a tartaruguinha mais nova
12 (doze) anos depois - vamos fazer um piquenique?
Vinte e cinco anos depois as tartarugas se
decidiram a realizar o piquenique. Quarenta anos depois,
tendo comprado algumas dezenas de latas, partiram.
Oitenta anos depois chegaram a um lugar mais ou menos
aconselhável para um piquenique.
Ah - disse a tartaruguinha, 8 (oito) anos depois,
excelente local este!
Sete anos depois todas as tartarugas tinham
concordado. Quinze anos se passaram e, rapidamente, elas
tinham arrumado tudo para o convescote. Mas, súbito, três
anos depois, elas perceberam que faltava o abridor de latas
para as sardinhas.
Discutiram e, ao fim de vinte anos, chegaram à
conclusão de que a tartaruga menor devia ir buscar o
abridor de latas.
- Está bem - concordou a tartaruguinha três anos
depois, mas só vou se vocês prometerem que não tocam em
nada enquanto eu não voltar.
Dois anos depois as tartarugas concordaram
imediatamente que não tocariam em nada, nem no pão, nem
nos doces. E a tartaruguinha partiu.
Passaram-se cinqüenta anos e a tartaruga não
apareceu. As outras continuavam esperando. Mais dezessete
anos e nada. Mais oito anos e nada ainda.
- Ela está demorando muito. Vamos comer coisa
enquanto ela não vem?
- As outras não concordaram, dois anos depois.
E esperaram mais dezessete anos. Aí outra tartaruga disse:
- Já estou com muita fome. Vamos comer só um
pedacinho de doce que ela nem notará.
As outras tartarugas hesitaram um pouco mas,
quinze anos depois, acharam que deveriam esperar pela
outra. E se passou mais um século nessa espera. Afinal a
tartaruga mais velha não pôde mesmo e disse:
- Ora, vamos comer mesmo só uns docinhos
enquanto ela não vem.

Como um raio as tartarugas caíram sobre os
doces seis meses depois. E justamente quando iam morder o
doce ouviram um barulho no mato por detrás delas e a
tartaruga mais jovem apareceu:
- Ah - murmurou ela - eu sabia, que vocês não
cumpririam o prometido e por isso fiquei escondida atrás da
árvore. Agora não vou mais buscar o abridor, pronto!
FIM (trinta anos depois).


1. No conto apresentado, todos os numerais estão grafados
também por extenso. Tal grafia pode justificar:
a) provocação à insistência dos leitores.
b) ênfase na importância dos numerais.
c) necessidade de provocar a leitura.
d) insistência na lentidão da leitura.
2. Assinale a alternativa que não representa um dos muitos
significados possíveis para este conto.
a)  realidade das relações interpessoais.
b) identidade nas relações interpessoais.
c) a eterna espera pelo prazer pessoal.
d) o preço das relações interpessoais.
3. Millôr Fernandes, ao personificar os animais dando-lhes
voz e consciência, criou uma fábula moderna. Pode-se
entender a fábula como:
a) alegoria.
b) adágio.
c) apoteose.
d) argumento.
4. A partir da leitura de O abridor de latas, pode-se deduzir,
por analogia, que a lentidão das personagens é a mesma que
parece caracterizar:
a) a dinâmica da leitura de mundo.
b) a interpretação dinâmica do mundo.
c) a interpretação das crises da linguagem.
d) a compreensão textual dinamizada.
5. Ainda por um processo analógico, pode-se inferir que o
abridor de latas, neste conto, simbolize um instrumento que:
a) aponta o dinamismo, a estática das diferentes áreas.
b) realiza, desvela, um movimento evolutivo.
c) afirma o retrocesso em marcha-a-ré, em diversas esferas.
d) promove a estagnação de um movimento evolutivo.
6. Anteponha aos períodos OI quando houver oração
substantiva objetiva indireta e CN se ocorrer oração
completiva nominal; a seguir aponte a alternativa com a
seqüência CORRETA.
1. Fabiano tinha a certeza de que não acabaria tão cedo.
2. O Santo exortava o povo a que se mantivesse fiel a Deus.
3. O Soldado insistia em que a prisão fosse feita.
4. Deixei-me estar em casa, na esperança de que me
chamasse.
5. Sê grato a quem te ensina.
a) OI - CN - OI - CN - CN.
b) CN - OI - CN - CN - OI.
c) CN - OI - OI - CN - CN.
d) OI - CN - CN - CN - OI.


7. Leia o fragmento “... concordou a tartaruguinha três anos
depois mas só vou se vocês prometerem que não tocam em
nada enquanto eu não voltar.” (Texto, linha 18). Assinale a
alternativa em que a afirmação não corresponde à realidade
do texto.
a) os verbos foram empregados todos no mesmo tempo.
b) os verbos foram empregados no mesmo modo.
c) os verbos foram empregados na mesma forma nominal.
d) nenhuma das alternativas é correta.
8. Na frase: “Mais oito anos e nada ainda. “(Texto, linha 23)
as palavras sublinhadas têm a função de:
a) substantivo - advérbio - preposição.
b) substantivo - preposição – advérbio.
c) advérbio - advérbio - advérbio.
d) advérbio - substantivo - advérbio.
9. O fragmento “Vamos comer alguma coisa enquanto ela
não vem” (Texto, linha 24) encerra uma oração:
a) subordinada adversativa.
b) coordenada sindética.
c) coordenada assindética.
d) subordinada temporal.
10. Na frase “Afinal uma das tartarugas murmurou”: a
palavra sublinhada exerce a função de:
a) sujeito.
b) complemento.
c) adjunto nominal.
d) complemento nominal.

fonte: http://www.cursobfgt.com.br/trt/182003.pdf

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MEU NOVO LIVRO DE CONTOS


___________________________________VELHOS TEMPOS...
___________________________________NOVOS DIAS

“(...) em 64 a Nação recebeu um tiro no peito. Um tiro que matou a alma nacional (...) Os personagens que pareciam fazer parte da história brasileira, ou da História do Brasil como nós imaginávamos, esses personagens de repente sumiram. Ou fora do poder, ou presos, ou mortos.”

(Herbert de Souza, Betinho)


Tudo foi combinado na sexta-feira no colégio. Marcos Paulo, Gustavo, Germana e Ana Luísa iriam ao cinema ver o mais novo filme de Brigitte Bardot. Os quatro adolescentes eram filhos da classe média da cidade de Esperança, uns com mais, outros com menos recursos finaceiros.
Em casa, Germana dava um jeito de ligar o rádio bem alto sempre que a mãe ia ao mercado fazer compras. Já Gustavo não parava de ouvir grupos não bem aceitos ainda para a época: os Beatles e os Rolling Stones. Ouvia-os na vitrola comprada pelo pai em viagem à Alemanha, pois o mesmo trabalhava como imediato em um navio. Ana Luísa, por sua vez, provava o conjunto de vestidos tubinhos e um par de botinhas de verniz, de bico fino e salto baixo que a mãe comprara na loja do seu Natanael; última novidade nos salões da moda.
O Marcos Paulo era um idealista. Vivia de querer entender os problemas sociais brasileiros e compreender por que a Guerra do Vietnã estava às portas. Por que centenas e centenas de jovens americanos seriam enviados para uma Guerra que não era deles? Ele não entendia essas coisas. Ser idealista começava a se tornar perigoso no Brasil.
— Como ficou o vestido, Ana? — quer saber a mãe dela.
— Um arraso, mãe, um arraso!
— Que palavreado é esse, menina? Mas espere aí... Que abanhado é esse, Ana? Está muito curto. Olhe: dá até para ver os joelhos. Isso é uma indecência! Trate logo de desfazê-lo, não quero filha minha andando por aí na vulgarice. Já não basta eu permitir que você vá ao cinema e ainda me aparece com uma dessas!
    Mas, mãe, é a última moda na Europa. É uma nova tendência.
    Falou bem. Na Europa. Você está no Brasil.
— Mas minhas amigas estão começando a andar assim e não quero ficar cafona, mãe!
    Resolva, Ana: ou faz crescer esse abanhado ou nada de cinema.
    Mas que droga! — Irrita-se.
    Repita, Ana, o que você disse? — fala brava a mãe.
Ana nada respondeu, pois foi educada para saber que os pais é que entendiam mais que os filhos. Não teve jeito, teve que estender o abanhado do vestido novo até o meio da perna.
— Mãe, posso pedir só mais uma coisinha?
— Assim você me bota para pedir esmola, Ana. O que é?
— Ah, mãe... Compra um “Jackie O” pra mim.
— Nossa! Mas essa marca de óculos é cara, minha filha. Não, por enquanto não! Meu dinheiro está curto. Contente-se com o que você tem. E cuidado com os modismos. Não quero que se pareça com os jovens <a title="" style="mso-footnote-id: ftn1" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn1" name="_ftnref1">[1]</a>desbundados. Você sabe que eles não são bem vistos pelo Estado.
Na casa de Gustavo:
— Gustavo, abaixe essa maldita radiola, menino. O vizinho aí do lado já ameaçou denunciar à polícia esse barulho infernal e olha que a ditadura está às portas, menino, às portas.
— Estudei a semana inteira e nem posso ouvir o que gosto. Isso não é vida! — protesta o garoto com um long play dos Beatles nas mãos, coisa rara, febre do momento. Conseguira emprestado de um amigo rico lá da cidade alta.
— Esses adolescentes! Não sei que graça você vê nesses cabeludos. Coisa feia! Quem já se viu homem cabeludo que nem mulher? Homem que é homem usa terno e, quando pode, gravata.  Cabelos curtinhos também trazem boa impressão. Não como esses cabeludos com essas roupas espalhafatosas que andam por aí. Não sei o que deu no teu pai quando permitiu que você tocasse esse long-play na vitrola.
— Mãe, esses cabeludos são os Beatles. O maior sucesso do momento no mundo.
— Sucesso pra vocês, que têm a cabeça nos pés. E trate de baixar logo essa radiola! E não se fala mais nisso!
Naquele dia, Marcos Paulo estudava em sua arejada casa à beira da pracinha municipal.
— Mãe, será que o pai vai comprar uma televisão? Conheço dois colegas na escola que na casa deles já tem televisão. Eles só vivem informados de tudo que acontece no mundo, enquanto eu... Tenho que viver direto na biblioteca fazendo pesquisas.
— Uma televisão é muito cara, meu filho. Mas acredito que se ele receber os atrasados, pode até ser que compre uma. Esteve me falando sobre isso. O problema é receber! Vontade é que não falta.
Marcos empolgou-se com a possibilidade. Não via a hora de poder ter uma Philco Predicta e seu cinescópio luminoso. Sonhava em poder controlar o volume da voz dos atores que se movimentavam dentro daquela caixa de designer futurista. Ele já usava o telefone em casa e isso lhe era motivo de orgulho. Status. Ouvira dizer que lá nos Estados Unidos já existia projeto de criarem, no futuro, um telefone capaz de ser levado na mão. Quanto a isso, não acreditava. Como uma pessoa poderia levar um telefone na mão, se os fones dependiam de fios? Iria uma pessoa andar pelas ruas todo cheio de fios? Isso era improvável. Coisa de americano.
O Marcos Paulo era um jovem daqueles que todo pai e toda mãe gostariam de ter como filho. Garoto aplicado nos estudos, respeitador, tirava as melhores notas no colégio e vivia sonhando que no futuro seria alguém importante. Para isso, absorvia o conceito de que nada cai do céu, é preciso lutar por nossos objetivos. Era essa a sua filosofia de vida e, nela, vivia imbuído. Externamente, gostava de usar os cabelos um pouco crescidos e roupas com sutis toques de modernidade. Muitos o identificavam como simpatizante dos jovens da esquerda, mas não o era. Apenas achava aquele novo comportamento bonito, coisa de jovem.
Na casa de Ana Luísa:
— Ana, venha para o jantar! Seu pai já chegou. Chame o Alex, seu irmão. Sentaram à mesa, mas ninguém ousou meter talher nos pratos antes da oração de agradecimento. Essa rotina era lei naquela casa e naquela época. Após a prece:
— Pronto! Podem se servir. — Ordenou o pai.
— Jonas, quero que você depois converse com a dona Ana Luísa. Tá com umas invenções de moda nada interessantes! — observa a mãe, preocupada.
— O que foi que houve?
— Ela fez um abanhado no vestido novo que dava acima dos joelhos, Jonas.
— Ana, você não está mais andando com a filha daquele atrapalhado do Miguel, não é? Já disse para você não andar com ela. As roupas que ela veste mostram que ela não é de boa procedência. Inclusive foi vista várias vezes pendendo as asas para os freqüentadores daquele bar de pinguços do Manoel. Uma moça sem futuro. E o pior é que ela só tem dezesseis anos. É o fim do mundo mesmo! — E benzeu-se.
Ana, como era de bom costume, ouviu tudo calada. Sabia que o pai não era de brincadeira. Se pudesse escolher entre uma prosa severa com ele e uma surra, preferiria a segunda hipótese. As lições de moral que saíam da cabeça do velho Jonas não eram nada apreciáveis, no sentido da dureza com que impunha suas lições de vida. Passados esses princípios de moralidade em família, a conversa voltou a ser descontraída.
— Gente, vocês não vão acreditar! — Principiou o pai com forte exclamação na voz.
— Fala homem! Não nos deixe curiosos. — pede-lhe a mãe.
— Hoje à tarde, depois do serviço, fui à casa do patrão assistir a um filme na televisão. Filme legal, mostrava um forte apache onde um cachorro, de nome Rin Tin Tin, e seu dono aprontavam poucas e boas no velho oeste.
— Humm! Tem gente ficando importante! Visitando casa de grã-fino assim, quem sabe um dia teremos uma promoçãozinha qualquer lá na fábrica. — Observa a mãe cheia de esperanças de trocar a já carcomida prateleira por um pitisqueiro novo, quem sabe seria possível? Telefone e televisão ela sabia que nem tão cedo teria em casa. Mas um pitisqueiro novo não era lá tão caro a ponto de o marido não poder comprar.

Sábado – dia de diversão

— Mãe, posso levar a lambreta? — quer saber o Marcos Paulo.
— Pode, mas cuidado com os excessos de velocidade, menino. Pensando bem... É melhor ir a pé.
— Mas, mãe! O Gustavo vai levar a dele e eu vou a pé pro cinema?
— E o que é que tem?
— Mãe, é que eu tô... como posso dizer... eu...
— Já sei, já sei... vais levar um brotinho na garupa, não é? — Gustavo riu — vai, leva. Mas não esqueça de andar devagar. Se se meter em alguma arruaça, prendo a lambreta. E outra coisa: nada de se meter com os meninos do sindicato dos estudantes, eles são contra o governo, fique longe deles pelo amor de Deus. Contra governo ninguém se mete. Se você é confundido com um deles... Que Deus o benza! Fique longe deles, ouviu? Nada de usar roupas com desenhos de flores ou muito coloridas, e vê se corta o cabelo, está grande. Não quero que seja confundido com hippies.
— Não se preocupe, mãe linda, seu filho é um santo! Não vou me meter com os sindicalistas, até parece que a senhora não me conhece. — Bajula a mãe estralando-lhe um sonoro beijo na testa.
— Só mais uma recomendação: depois da aventurazinha com essa menina que você vai levar, esqueça-a.
— Ora, por quê? — Estranha o filho.
— Você vive no mundo da Lua, menino? Você sabe que menina que anda de lambreta é mal falada!
—Ah, mãe, mas isso é lá na Cidade Maravilhosa. Aqui é interior, e além do mais, não vamos para as partes baixas da cidade, vamos apenas ao cinema. E ela não é menina vulgar, é uma amiga da escola.
— Tudo bem, tudo bem. Mas tenha cuidado.

O ENCONTRO

Os quatro se encontraram na pracinha central. Gustavo e Marcos Paulo chegaram primeiro. Cada um deles com uma vespa, ou lambreta, como queiram. A vespa do Marcos Paulo era velha, presente do avô; a do Gustavo era brilhante e nova. Mas isso não importava, o que importava era que lá na esquina, já apontavam as duas meninas: Germana e Ana Luísa, lindas como nunca.
Não dissemos ainda, mas o Marcos Paulo era fissurado em Ana Luíza.  O Gustavo, por sua vez, tentava angariar de Germana beijos regados ao cheiro do Lancaster.
— Nossa! Como vocês estão bonitas! — É Marcos Paulo fazendo elogios. As duas amolecem de vaidade. Germana pensando em como seus cabelos curtinhos estavam fazendo sucesso, e Ana Luíza, orgulhando-se de seu vestido tubinho e par de botinhas de verniz, de bico fino e salto baixo. Os meninos vestiam-se modestamente com calças de tergal, cabelos penteados à Elvis Presley e blusão preto de motoqueiro. Um arraso! Saíram pelas ruas esburacadas de Esperança, curtir o filme sensação do momento.
Na esquina, dona Sinhazinha, viúva de um já veterano da II Guerra, torcia a cara. “Esses jovens!” Que indecência”.
A cidadezinha possuía pequenas casas de janelões gigantescos, uma farmácia, uma loja de fazendas, um praça em forma de quadro com quatro imponentes palmeiras nas laterais. Nela, os jovens aproveitavam a tarde para paquerar, ir à banca de revistas e jornais ou simplesmente tomar um suco. Foi nessa praça que os quatro se encontraram. Felizmente, nessa época, não havia o risco de serem assaltados por pivetes e muito menos de serem revistados por PMs. Quanto à economia, existia apenas uma fábrica de tecidos.
Chegaram ao cinema que já estava apinhado de jovens e adultos.
— Vamos, gente! O filme começa em 5 minutos. &shy;— Observa o Marcos Paulo, apressadamente.
— Mas você é deselegante, Marcos! Não vai pagar a pipoca para as meninas?
— Ora, eu até poderia pagar, mas, não estamos em quatro? Eu pago para a Ana e você para a Germana. Que tal?
— É o mais justo! — Declara Ana Luísa, sorrindo. — Mas ninguém pode comer dentro do cinema, o Lanterninha é implacável.
— Ora, a gente esconde aqui dentro dos blusões. Quando o chato do <a title="" style="mso-footnote-id: ftn2" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn2" name="_ftnref2">[2]</a>Lanterninha passar, a gente abocanha um monte de uma vez só na boca, ele nem vai ver. Todos riram da criatividade do Marcos Paulo.
Estavam para entrar quando ouviram um carro roncando forte se aproximando do cinema. Era um Aerowillis novinho em folha. De dentro dele saiu o filho do farmacêutico da cidade com a bela jovem de nome Heloísa, que apesar da beleza, não gozava das benesses das “boas” línguas da cidade. Tudo culpa do jeito largadão de ela encarar a vida, que parecia não pertencer àquela época, pois procurava fazer tudo aquilo que era contra os costumes reinantes, e isso lhe custava um alto preço. Era uma desbundada.
Vendo aquele carrão e o estilo de vida que aquele casal levava, uma leve sensação de inveja era visível nos olhos de muitos jovens ali, inclusive do Gustavo e do Marcos Paulo. Mas todos eram unânimes: no dia em que a Ditadura resolvesse se impor com impetuosidade, aquele casal entraria numa fria, ou pelo menos a Heloisa.
Entraram, finalmente. Entre um drops e uma mordida nas pipocas, às escondidas, o Marcos tratou logo de se aproximar sorrateiramente de Ana Luísa, com todo cuidado, claro, pois o Lanterninha do cinema não parava de circular. Mesmo assim, com certeza, naquele escurinho do cinema, chupando um drops gianines, longe de qualquer problema, perto de um final feliz, um romance, ou quem sabe dois, seriam inaugurados. No final do filme, já de saída, Marcos Paulo pergunta a Gustavo:
— Quem foi mesmo que o artista salvou no final, Gustavo? — Percebeu tarde que aquela pergunta denunciava algo mais sério ocorrido entre ele e a Ana dentro do cinema. Gustavo não perdeu tempo:
— Humm! Parece que o filme não foi tão interessante assim, né, gente! — Ironiza Gustavo em tom de galhofa. — Que vocês andavam fazendo, hein, pombinhos?
— Nada que lhe interesse! — Respondeu prontamente Ana, mas sem agressividade, apenas ficando um pouco vermelha. — E quem foi que deu uma saidinha perto do meio do filme? Se não me engano vi uma saia e uma calça se dirigindo à porta de saída do cinema. — Contratorpedeia Ana.
— Uma saia e uma calça? Ora, mas não era um filme fantasma, era gente? — ninguém riu da piada do Gustavo — Tá bom, gente! Vocês venceram. Vamos? Cada um na sua e... Paz e amor!
Passou-se mais de um ano depois daquela sessão de cinema. Marcos e Ana estavam fortemente unidos. Planos de casamento e tudo. Quanto ao Gustavo, já estava com a 3ª namorada. Era um namorador inveterado.
— Ana, — começou Marcos Paulo, — tô aqui pensando... Com minhas economias e a ajuda do pai, que me quer ver advogado, acho que entro nesse ano pra Universidade. Estou estudando bastante. Depois de formado, viveremos juntos e criaremos nossos filhos. Já estou até pensando... Se o primeiro filho for menina, ponho o nome de Maria Eduarda; se for menino, Leonardo. Que acha?
— Acho que o senhor não me consultou, seu topetudo! Acho melhor Ana Paula e se menino, Luis Eduardo.
— Humm! Vamos ter que negociar!
— Que negócio?
— Você me dar um beijo e pronto! Aceito.
— Safado! (risos e beijos rápidos na pracinha)
Na esquina, dona Sinhazinha, viúva de um soldado da II Guerra, torcia a cara. “Esses jovens!” Que indecência”.
— Mas, Marcos, falando sério, agora... O que você acha das meninas usarem anticoncepcional?
— Quê!? — pasmou o Marcos diante daquela pergunta.
— Ora, foi só um pergunta, não vá pensar besteiras. Fiz essa pergunta a você porque não ia perguntar a meu pai, né? Ele me mataria.
— Acho... Sei lá... É uma coisa complicada, Ana, de se responder.
— Eu sei, eu sei... Deixa essa pergunta pra lá. É que o mundo está se transformando tão rápido que algumas coisas começamos a questionar. Não vê que estão com projeto de mandar o homem pra Lua? Você acredita que isso será possível?
— Acredito que sim, afinal, a tecnologia está evoluindo bastante. Não temos o telefone, o rádio e as radiolas no lugar dos mensageiros, das correspondências e dos vibrafones? Não comentam que já existem fora dos bancos até computadores capazes de fazer cálculos complicados? O que será desse mundo no ano 2000? Naves espaciais, carros voadores, máquinas falantes, aviões supersônicos, satélites... Sabe, Ana, às vezes tenho medo do futuro.
— Medo!? Como assim?
— Sei lá! Fico pensando... Será que as cartas deixarão de existir? A família continuará unida? As cidades serão tranqüilas? Os filhos respeitarão os pais? O mundo vive em permanente estado de transformações. Nada do que é permanece sempre igual. O mundo sempre será uma evolução constante. Meu avô vive de injuriar a televisão, apesar de ainda não tê-la. É que uns amigos dele depois que compraram a televisão, nunca mais foram à praça conversar.
— Por quê? Só por isso?— pergunta Ana.
— Porque segundo ele ela tira o diálogo entre as famílias e faz com que velhos amigos não mais se encontrem para conversar.
— Não acho. Na casa de um nosso vizinho tem televisão e quando vai passar um filme de bang-bang, ficam todos na sala assistindo. Isso não é união?
— Sei não, Ana, sei não! Meu avô sempre fala que a tecnologia há de roubar do homem o espírito humano para transformá-lo em máquina. E olha que meu avô dificilmente se engana nas coisas que diz.  Na época dele não havia essas coisas modernas como telefone, rádio e televisão. No lugar do telefone havia as cartas; no lugar do rádio, havia os jornais, os livros e as novelas italianas da revista Grande Hotel; e no lugar da televisão existiam os romances lidos depois da ceia. E hoje quase ninguém mais lê, ninguém mais conta histórias, ninguém mais escreve cartas.
— Mas você escreve cartas pra mim quase todos os dias! Tenho todas guardadinhas... — Comenta Ana Luisa aveludando a voz.
— Eu sei, meu amor, eu sei! E vou continuar escrevendo... Mas..., mudando de assunto, tenho uma surpresa que comprei para você, olha aqui.
    Surpresa!? — Entusiasma-se Ana.
— Sim. Um presentinho para você não esquecer de mim. — Era uma pequena medalha em correntinha dourada. Nela, as duas letras M &amp; A, gravadas.
— Ah, mas que lindo! —Brigadão, amor! Você merece um beijo.
Então...
— Nossa! Marcos! Olha só que horas! Quase cinco horas da tarde e eu aqui na praça com você. Minha mãe vai me matar. Preciso ir, meu lindo. Beijão.
— Beijão só de palavra? Não vale!
— Você não acha que vou te beijar aqui na rua, né, seu louco? Quer ver sua futura mulher mal falada? Dei um beijinho agora há pouco porque foi rapidinho e ninguém passava.
— Tô brincando, amor. Claro que não quero minha futura mulher falada por aí. Amanhã posso aparecer por lá?
— Não! Você já foi ontem. Meu pai pode não gostar. A gente se vê na escola. Tchau! E vê se não fica matutando o tempo todo essas coisas de futuro. Não vá dar uma de Nostradamus. Vai curtir o Roberto Carlos que tá de música nova junto com a Wanderléia e o Erasmo.
Do outro lado, dona Sinhazinha... “Ainda vou dizer isso ao pai dela!”
Marcos Paulo foi para casa imaginando um dia ter uma casa, uma mulher para amar, a Ana, claro; e uns cinco filhos bonitos, gordos e saudáveis. Todos teriam uma educação exemplar. Seriam médicos, engenheiros, arquitetos... Estava feliz com o sonho e foi feliz para casa.

O Destino Não Tem Partidos

Ele chegou a casa e viu um alvoroço: um carro de polícia e uma meia dúzia de homens de cinza com seus tradicionais capacetes de polícia postavam-se em frente da sua casa. Esperavam-no.
— É você o Marcos Paulo Vinicius de Sant’Ana? — perguntou um deles com firmeza na voz.
— Sim, por quê? —Estranhou Marcos, assustado por não entender a presença daqueles policiais ali, logo na casa dele.
— Acompanhe-nos! — Ordena um policial com cara de nenhum amigo.
A mãe do garoto estava muito abatida. O pai, ausente, nada podia fazer.
Marcos tinha um amigo que pertencia a uma organização sindical de estudantes que fazia confronto ideológico contra o governo militar brasileiro. Os confrontos não se davam apenas no campo ideológico, muitas vezes esses confrontos partiam mesmo para a agressão física contra policiais e contra outros estudantes da ala direitista. Tudo ocorria em manifestações e passeatas. Tal amigo, que na verdade não passava de um colega distante do Marcos, tendo sido pego e apontado como um dos responsáveis pela rebelião contra alguns soldados, foi preso e obrigado a confessar quem eram os demais integrantes do grupo de estudantes sublevados. Sob forte coação policial e torturas, viu-se na iminência de ser morto pela violência dos choques elétricos a que fora submetido. Como não queria acusar os verdadeiros mentores dos protestos, pois isso lhe traria sérios problemas, acusou o primeiro que lhe veio à lembrança como um dos membros da organização estudantil: Marcos Paulo. Eis a razão de a polícia estar de prontidão na porta do rapaz com sonho de família. <a title="" style="mso-footnote-id: ftn3" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn3" name="_ftnref3">[3]</a>As roupas que o Marcos costumava usar por hobbie, parecidas com as vestimentas dos jovens contestadores, ainda mais fizeram dele um suspeito em potencial. Levaram-no algemado, vendado e amordaçado para um destino desconhecido. A mãe nada podia fazer, sob pena de também ser enquadrada em delito contra a Pátria. Ficou apenas rezando e chorando pelo filho usurpado. Vizinhos procuraram dar-lhe consolo enquanto o chefe da casa chegava.
Perto das sete horas da noite:
— O que é que está acontecendo aqui, gente? — era o pai do garoto que chegava.
— Levaram teu filho, homem!
— Quem, o Marcos? Mas o que ele fez, meu Deus!?
— Acusaram o menino de participante dos amotinados contra o governo, de sindicalista, de fazer oposição ao governo e essas coisas...
O pai sabia que aquela acusação era gravíssima e como era difícil provar a inocência do filho diante de um regime militar apoiado pelos brancos do norte da América. Desesperou-se.
— Meu filho é inocente! A única coisa que estava na cabeça dele era o casamento com a menina Luísa. Tenho certeza de que foi vítima de uma armação. Mas isso não vai ficar assim, vou à imprensa, à rádio, aos jornais, ao governo e aos diabos para libertar meu filho.
O pobre pai, em seu delírio de amor ao filho, o que é super natural, esqueceu que a rádio, os jornais, a televisão, tudo era dominado pelo governo. Nada se podia fazer. A única coisa possível era tentar ver o garoto e rezar... Quando se era acusado de uma coisa dessas, dependendo do status social do acusado, três coisas lhe poderiam acontecer: primeira, ser exilado; como foi o caso de Caetano Veloso, Gilberto Gil. Segunda, ser preso ou simplesmente “desaparecer”; terceira, ser morto. A primeira para as pessoas famosas, de muito prestígio social; a segunda, para pessoas de relativo conceito social e líderes estudantis importantes; a terceira para os outros casos. Em qual categoria se enquadrava o Marcos?

Na prisão:
— Quer dizer que você foi enxadrezado? — Observa um jovem de 21 anos, preso pelos mesmos motivos.
— Eu não fiz nada, não sei de nada, não participei de nada! Não sei por que estou aqui preso. — Berra o Marcos em atitude de desespero.
— Eles não estão nem aí para o que nós pensamos depois de vir parar aqui. Depois de cair aqui, meu rapaz, só sai morto ou, com muita sorte, aleijado ou psicopata. Os choques, o uso do pau-de-arara, as tentativas de <a title="" style="mso-footnote-id: ftn4" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn4" name="_ftnref4">[4]</a>afogamento geralmente liquida qualquer um — E riu vertiginosamente o rapaz, que não parecia mais uma pessoa normal.
Marcos começou a pensar nos pais, na escola que estava para terminar, na faculdade que desejaria cursar e... claro! No amor de sua vida: Ana Luísa. Onde estaria ela agora? O que estaria fazendo? Como reagiu a sua prisão? Estaria ela acreditando que ele tinha participação com os amotinados? Ele não tinha, apesar de achar nobre o ideal dos meninos em lutar contra os desmandos do governo. Olhou para os cantos da sela sujos de pontas de cigarro; para os guardas brutamontes que faziam a guarda; para outros jovens ali presentes. Onde estava? Não sabia, pois fora vendado no caminho. Do outro lado do corredor principal, vinha um misto de grito, gemido, dor, sabe-se lá o quê.
— O que está ocorrendo lá? — perguntou nervosamente ao companheiro de sela.
— Não imagina? Estão arrancando confissões que não existem de alguém. É assim que descobrem amotinados sem serem amotinados. — Ironiza o garoto parecendo totalmente psicótico, com voz pausada.
Em casa de Marcos:
— Meu Deus! O Marcos não tinha participação nessas organizações. No dia em que ele foi preso, ele estava comigo. Conversávamos sobre o casamento e o nosso futuro. — Desabafa Ana Luísa em presença dos pais do rapaz, dos pais dela e de alguns vizinhos.
— Minha filha, seja sincera! Marcos é inocente? Você sabe de alguma coisa? Eu muito falei pra ele não usar aquelas malditas camisas com desenhos florais... ele não me ouvia.
— Juro pela hóstia sagrada! Ele só pensava em estudar, formar-se, casar comigo e termos filhos... Só isso! Nunca falou nada a respeito de participar de uma organização contra quem quer que fosse.
Passaram-se duas semanas... Nenhum vestígio do paradeiro do Marcos e nem de como ele estava. Da parte da polícia existia apenas indiferença e uma remota esperança de que, talvez, um dia, ele fosse solto. E era só isso, tudo se resumia em “talvez”. Não adiantava procurar justiça, porque a justiça era comprada, ou, na melhor das hipóteses, subserviente.
Na prisão:
— Amanhã vão te interrogar, menino. — É o Luisão dirigindo-se ao Marcos.
    Que faço, Luisão, estou com medo!
— Minta. Acuse. Defenda-se. O importante é jogar a culpa em alguém ou qualquer coisa. Assim você poderá, quem sabe, se safar daqui.
Mas o Marcos não sabia mentir; e a verdade era para a polícia uma prova cabal do delito. Marcos foi interrogado brutalmente e, como só dizia a verdade, de que não tinha participação em manifestações contra o regime, foi violentamente torturado. Usaram de choques elétricos, tentativa de asfixiá-lo... muitos choques. Choques no tórax, no peito, no umbigo, na cabeça... Em dado momento, fugindo-lhe as forças, sucumbiu. Fora levado para um local desconhecido e deixado como morto; inerte, sem sentidos. Deixado como um animal chaguento, entregue as intempéries frias da noite num terreno baldio.
Mas, a providência divina, muitas vezes, surpreende os mais céticos com acasos. No terreno baldio em que o Marcos Paulo fora deixado moribundo, costumava catar lixo um ser ignóbil perante os olhos dos homens, mas de calor humano suficiente para entender que um rapaz precisava de ajuda. Assim, com muito esforço, esse pedinte levou o garoto para uma pequena casa, que não passava de uma barraca feita de papelão. Olhou para o menino várias vezes e acreditava ser ele conhecido, só não lembrava de onde. Precisava de ajuda, pois o rapaz respirava com dificuldade. Cobriu-o com um velho e limpo cobertor, único que tinha para os dias de inverno e saiu em desabalada carreira em busca de providências. Com precaução para não despertar a curiosidade dos policiais, procurou o padeiro da esquina, que por várias vezes o salvou da fome, doando-lhe alguns pães dormidos.
— Juvenal, Juvenal! — Aproximou-se com o coração na mão.
— Não tenho pão hoje, Natalício. O movimento foi péssimo.
— Não é isso, homem!
Contou todo o ocorrido ao padeiro. O dono da padaria, indo ao local, prontamente reconheceu quem era o rapaz. Imediatamente e secretamente se comunicou com a família do Marcos. Foi uma alegria infinda na casa do garoto. O filho estava vivo. Trouxeram-lhe secretamente para casa e chamaram um médico para tratar-lhe dos ferimentos.
— E então, doutor? — É a mãe, preocupada.
— Infelizmente, ele entrou em estado de coma. Foram fortes as convulsões. Tem sinais de que levou muitos choques elétricos.
— Miseráveis!
— E o que isso quer dizer, doutor. — quer saber o pai, desesperado.
— Quer dizer que ele pode voltar ao normal daqui a uma hora ou...
— Ou o que, doutor? — A mãe, aflita.
— Ou pode levar anos. O importante agora é vocês seguirem minhas recomendações medicamentosas. O Marcos vai precisar muito da atenção de vocês nesses dias.
Marcos Paulo não precisou da atenção da família apenas por um dia, uma semana, um mês ou um ano, mas... Por vários anos, muitos e muitos anos em profunda letargia...

O que aconteceu em tantos anos de coma profundo?

O pai aposentara-se e passara a viver escrevendo livros; passava quase todo o dia na tela do computador, pela internet, em busca de algo que pudesse processar o governo pela invalidez do filho. A mãe sucumbira em mais de cinco anos de depressão. Por várias vezes, viu-se às portas da morte. Mas, com a ajuda de senhoras da igreja, recuperou-se e vivia rogando a Deus que o filho abrisse os olhos pelo menos uma única vez antes de ela morrer. Ana Luíza, sua antiga namorada, já era professora universitária formada. Ganhara prêmios nacionais de pesquisa científica na área de Sociologia. Durante mais de três anos ela viveu a penitência de ir quase todos os dias à casa do garoto. Mas o coração vazio exige que seja preenchido; assim, anos depois do trágico acontecimento com aquele que lhe ia dar filhos, casou-se na pequena matriz de Esperança com outro professor universitário. O ingrato destino não lhe reservou outra escolha. Gustavo, o ex-amigo dos tempos do cinema, transformara-se em gerente de banco, também casado e já com três filhos.
Numa noite de dezembro, época de Natal, estava a família do Marcos Paulo reunida com alguns amigos para a celebração do Nascimento de Jesus. Na casa, estavam: Ana Luísa, o marido e filhos; Gustavo, esposa e filhos e alguns velhos amigos. Apesar da situação trágica do Marcos Paulo, eles nunca deixaram de freqüentar a casa do bom e saudoso Marcos Paulo Vinicius de Sant’Ana.
Logo após a ceia, regada a vinho e a carne de peru, todos se dirigiam à sala de visitas para a distribuição dos presentes. Meninos pra cá, pra lá. Melodias natalinas energizavam aquela casa. Em dado momento, a velha mãe do Marcos Paulo, vendo a alegria das crianças que poderiam ser suas netas, caso o filho tivesse casado com Ana, sentiu uma tristeza profunda, lacônica. Todos perceberam o abatimento da senhora. E, em gesto de solidariedade, o marido de Ana Luiza sugeriu que se fizesse uma oração, todos juntos. Uma oração silenciosa. Até as crianças, vendo o ato cerimonioso dos pais, também ficaram em silêncio de respeito. Menos o Júnior, o mais novo, que saiu devagarzinho da sala. Quando a oração terminou, deram pela falta do menino.
— Júnior! — Grita o pai pelo garoto, chamando-o. — Ele logo aparece.
— Painho, painho! O ôme da cama falou cum eu!
Risos na sala. — Pelo palavreado pueril do menino.
— É a televisão que tá ligada lá no quarto, meu filho. — Explica Ana Luísa.
— É não, mainha! O ôme da cama falou cum eu mermo. Ele falooou!
— Júnior, venha cá e sente-se aqui, deixe de besteiras. Está deixando a mãe do Marcos nervosa.
O menino sentou-se, mas aos berros por não acreditarem nele. Tanto choro assim, fez Ana Luísa tomar uma decisão:
— Tá bom, seu chorão! Vamos lá pra eu te mostrar que é a televisão que está ligada.Volto já, gente!
Ana Luisa, ex-namorada do Marcos, não voltou como foi. Voltou com as mãos à boca num choro compulsivo, parecia ter visto um fantasma desaparecido há muitos anos:
Marcos, enfim, em pleno dia de Natal, acordava de um sono que parecia não mais ter fim.
Em sua letargia de tantos anos numa cama, não viu o Brasil ser campeão da Copa de 70. Não viu o homem chegar à Lua. Não viu o final da Guerra do Vietnã — quanto a isso foi até bom que não tenha visto mesmo — Margaret Tatcher retomar as Malvinas também não viu; muita coisa aconteceu no mundo e o pobre do Marcos não teve ciência. Marcos Paulo Vinicius de Sant’Ana não soube do impacto que o Festival de Woodstock, embalado pelo som psicodélico de Jimi Hendrix e Joan Baez, provocou no mundo jovem; também não pôde ver o milésimo gol de Pelé; foram tantas as coisas que o pobre garoto sonhador e idealista não viu: o surgimento do fax, do primeiro vídeo cassete, do primeiro microprocessador, dos vídeo games, dos walkmans, não viu o surgimento do Estado de Israel. Os embalos de sábado à noite, com a disco music dos anos 70 com John Travolta, terminaram; mas o garoto, inerte, passou todo esse período moribundo numa cama, entre a vida e a morte.
Apesar de tudo isso, Marcos Paulo Vinicius de Sant’Ana teve a sorte de ainda poder renascer das ruínas de um mundo desconhecido. Teve a sorte de poder redescobrir-se alma vivente, entre os tantos viventes que, como ele e em sua época, não tiveram a mesma sorte.
“Viva o Brasil”!
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O CÉU DOS ESCRITORES
(Conto vencedor do I Concurso Estadual Prosa e Verso Mestre Graça – 2002)

Paulo Honório, personagem do livro São Bernardo de Graciliano Ramos, estava zangado no céu, apesar de não ser muito permitido isso por lá. Estava zangado com Graciliano Ramos que dera a ele uma vida tão difícil, uma vida tão sofrida, um destino infame.  “Quem ele pensa que é para determinar o meu destino? – conversava com São Pedro que andava de um lado para outro — antes de determinar quem eu seria no livro, ele deveria ter me consultado para saber se eu queria ser aquele personagem ranzinza, capitalista, amante do dinheiro e que gostava de explorar as pessoas humildes. Antes de ele determinar que eu deveria esfaquear um e matar outro, deveria perguntar se eu queria ter feito essas coisas, ora! Até o nome que ele me deu, São Pedro, ele não me consultou para ver se eu  queria...”
— Qual era mesmo o seu nome lá na terra? — pergunta São Pedro.
— Paulo Honório.
— É um nome até interessante, lembra dinheiro, lembra honorário, e honorário lembra dinheiro, por que você não gostava dele, dinheiro, quer dizer, honorário, não, meu Deus! Que confusão!?
— Ora, São Pedro, Honório fala de honorário e honorário fala de dinheiro e dinheiro era a razão da minha vida lá na terra. Pelo dinheiro eu matava e morria. Tudo culpa de Graciliano Ramos, aquele velhaco. Deixa estar! Um dia ele vem parar aqui, se é que vem! Quando isso acontecer ele vai ter que me explicar direitinho o porquê de ter me personalizado dessa triste forma naquele bendito livro chamado São Bernardo.
Acabado esse diálogo, Paulo Honório se afasta indo para as orações obrigatórias por ter sido tão mau lá na terra. Por pouco não vai para o inferno. Se não fosse a intercessão de São Paulo por ele, tinha ido queimar no fogo do inferno.
Tendo saído de perto de São Pedro, eis que aparece um outro personagem de Graciliano Ramos no livro Angústia, o Luiz da Silva.
— Como vai Luiz? Já se curou daquela angústia? —  quer saber São Pedro.
— Estou fazendo esforço para me curar, São Pedro. Na terra fui um homem muito reflexivo, em tudo eu refletia. Acredito que toda aquela minha angústia era porque eu pensava demais. Meu idealizador colocou em mim um sentimento profundo de existência. Eu observava tudo, tudo me tocava, me ofendia. Naquela oportunidade que eu ia me casar com Marina, eu era um homem de bom coração. Infelizmente Marina não me quis, me trocou por Julião Tavares, aquele bandido!
— Olhe! Cuidado, aqui não é permitido sentir ódio.
— É mesmo, desculpe, ainda estou nas orações de remissão de pecados.
— Eu era um homem até bom quando era vivo, meu defeito foi ter matado Julião Tavares, e quase não consigo chegar aqui no céu por causa disso. Se eu não tivesse me arrependido quando estava na cadeia, creio que teria ido para o fogo do inferno. Apesar de na terra eu ser um sujeito introspectivo, eu gostei do personagem que eu fui. Espero um dia me encontrar com o meu criador, o Graciliano Ramos. Será que ele também virá para o céu?
— Pelos registros dos nossos livros, Graciliano Ramos não parecia muito acreditar em céu e em inferno. Ele ainda era criança e já duvidava acerca da existência de inferno e de céu. Creio que só a Providência é quem pode julgar o caso dele. — Responde São Pedro.

Tendo saído de perto de São Pedro, eis que aparece um outro personagem de Graciliano Ramos no livro Angústia, a Marina.
— Ah Marina, Marina, como foi difícil você conseguir estar aqui, não!?
— Sim meu bom Santo! Foi muito difícil, tive que ficar no purgatório quase dois meses remindo os pecados. Culpa daquele fumante inveterado, o bicho era tão ruim que nem sequer dava um bom dia direito ao povo. Conta-se que não gostava de música, de rádio, de campainhas, se aborrecia com vizinhos, e odiava quem falava alto.
— Ah, Marina, aqui nos autos do céu diz que ele não gostava de quem falava alto era porque o pai dele costumava dar-lhe grandes pisas quando criança e sempre gritava muito com ele. Sofrera muito, o pobrezinho; vida rude, vida severina.
— Mais isso não é desculpa, São Pedro. Eu não gosto dele porque ele fez de mim no livro como sendo uma personagem ambiciosa, vaidosa, aproveitadora, pobre, calculista e fria. Eu não queria ser assim, ora! Quem deu liberdade a ele para determinar esse tipo de personagem para mim? Não o perdôo por isso. Nesse momento houve um grande rebuliço no céu. Fortes trombetas soaram. Anjos voavam em polvorosa. Espanto geral. Logo em seguida, um grande silêncio, e as nuvens começaram a se abrir como uma porta. Fortes luzes irradiavam daquela abertura no céu... de repente, saiu dessa abertura uma imagem de um homem e de uma mulher, acabaram de chegar ao céu sem passar pelo purgatório.
— Fabiano, Sinhá Vitória!!? —  Admira-se um anjo.
— Sim, a Providência resolveu deixar-nos entrar. Achou que na terra sofremos muito com a seca e pelo inferno já tínhamos passado. A Providência decidiu que éramos inocentes, vitimados pela seca e pelos maus políticos daquele país que vivíamos. A Providência viu as noites de fome e de sede que passamos e se apiedou da gente. A Providência viu também que os homens de decisão de onde eu vivia roubaram muito o dinheiro dos pobres, e que pobre assim como eu não mereceria o inferno, muito menos precisava de purgatório. O purgatório, disse a Providência, foram os anos de fome, de sede, sem uma casa para morar, sem uma cama decente para dormir, sem dinheiro para comprar a comidinha dos meninos. Nossos pés rachados, nossas mãos calejadas, nossa pele rústica são nossos testemunhos que fomos sofridos. Apesar de eu ter sido lá embaixo um sertanejo fugitivo da fome, vivendo na miséria, tendo dificuldade de comunicação, adorei ser Fabiano lá na terra, porque vivi meus dias numa região que, apesar de seca, é cheia de sertanejos de bom coração. E a paisagem do nordeste quando a chuva bate vira um encanto. E o sertão ainda vai virar mar, já dizia Euclides da Cunha no livro Os Sertões.
— Interessante o céu! – admira-se Mário de Andrade! — Lá na terra esse Fabiano no livro Vidas Secas era calado, quase não abria a boca, aqui está até bem falante e sabe até citar coisas da literatura!
— Quer dizer então que você gostou de ser um sertanejo fugido da seca criado por aquele Graciliano? – quer saber Paulo Honório que se aproxima.
— Claro que gostei, ochente! Por que eu num ia de gostar?
— Você é burro mesmo né, Fabiano! Graciliano bem que poderia ter dado a você um destino melhor, e não criar em tu um homem miserável da seca. Por que ele não te criou um dono de empresas ou tudo o mais?
— Cale-se, Paulo do dinheiro! Você está condenado a mais 1892 padres nossos e 1953 ave-marias. Já para a solitária rezar! – ordena zangado o delegado do céu.
— Ora, se eu gostei é porque gostei, ochente! A única coisa que fiquei de coração partido foi porque eu tive que matar minha cachorrinha Baleia, pobrezinha! Bem que nessa parte ele poderia ter dado um destino diferente ao bicho. Ela era de estimação, tinha nascido ali, diante de nossos olhos, perdê-la foi muito doloroso. O mundo de preás que Graciliano Ramos desejou a pobre da cachorra depois da morte, que Deus tenha dado a ela esse mundo.
— Vejo que és sentimental, Fabiano! — Observa o anjo Gabriel. Se o homem na terra tivesse pelo menos 20% do teu sentimentalismo, não teria destruído tanto a natureza por lá. As doenças na terra surgirão à velocidade da luz, o homem pagará pela agressão contra a natureza. Porque o homem não teceu a rede da vida, ele é apenas um dos seus fios; e o que ele fizer à rede da vida, estará fazendo a si mesmo.<a title="" style="mso-footnote-id: ftn5" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn5" name="_ftnref5">[5]</a>
Após esse diálogo todos foram se concentrar na praça da paz celestial para as orações. Um anjo deu uma rasante baixa com um cálice vermelho na mão. Simbolizava tragédias na terra. Logo em seguida, outro anjo surgiu do vácuo trazendo um cálice azul, simbolizava a vinda de mais um para o céu. Outro anjo apareceu do vazio com um cálice preto. Tristeza no céu. Todos se ajoelharam e choraram. Mais uma alma tinha ido para o inferno. A comoção foi geral.

INTERROGATÓRIO.

Infelizmente, o dia do velho Graça tinha chegado também. Morrera de problemas no pulmão. Também! Três maços de cigarro Selma por dia não é brincadeira! Chegara ao purgatório e ia ser interrogado:
— Seu nome terreno, por favor? – pergunta o inquisidor celeste.
— Graciliano Ramos.
— Idade e altura:
— 61 anos e tenho um metro e setenta e cinco.
Bem, senhor Graciliano Ramos, vamos ver aqui nos autos o que é que consta sobre o senhor... aqui diz que o senhor fumava muito, três carteiras por dia. Diz também que o senhor gostava de aguardente. Diz que o senhor não gostava de música. Diz que o senhor era...era...ateu!!? É verdade, senhor Graciliano!? Isso é grave!
— Não é verdade! Eu acreditava em Deus, só que de forma diferente do jeito de crer das outras pessoas. Se o senhor olhar bem aí no livro, vai ver que em quase todas as minhas cartas eu falei o nome de Deus!
— Humm! Deixe-me ver... é verdade, o senhor usou muito o nome da Providência! Isso pesa a seu favor. Vamos continuar. Foi preso por ser comunista!
— Senhor, posso me explicar. Fui comunista sim. Acreditava que o homem vivia explorando o homem e eu achava que o comunismo era que podia dar uma vida mais igualitária aos homens.
— Humm! Isso pesa a seu favor também, pensava nos semelhantes. Mas deixe-me continuar. Fala aqui nos autos que o senhor gostava muito de criança. Que bom! Aqueles que gostam de crianças se aproximam do reino dos céus. Consta também que o senhor odiava a burguesia e era indiferente à academia. Percebo que o ódio não é boa coisa, mas odiar a burguesia mostra que o senhor não era alienado, e ser indiferente à academia, mostra que o senhor era humilde. Bom... vamos ver mais, deixa-me ver... quando prefeito daquela cidade dos índios fez uma brilhante administração, não se corrompendo como a maioria dos políticos se corrompe. Mas o senhor gostava de palavrões escritos e falados, seu Graciliano, isso não é lá boa coisa não!
— Falhas humanas, senhor! Peço que me perdoe.
— Bem, seu Graciliano, para terminar, encontro aqui a prova que o senhor foi um cristão de verdade: o seu livro preferido para leitura era a santa Bíblia. E o senhor está absolvido dos seus pecados terrenos. Entre para a glória eterna. Desfrute dos prazeres invisíveis aos humanos na terra, entre para a vida eterna.
Assim, Graciliano Ramos chegou ao céu. Mas alguns lá dentro iam tomar satisfação. Marina e Paulo Honório estavam uma fera com o velho Graça.
Novo rebuliço no céu, as nuvens se abrem novamente e eis que aparece ele diante de todos. Graciliano Ramos entrou definitivamente no céu. Recebeu as boas vindas de todos, menos do Paulo Honório e da Marina. Fabiano, o vaqueiro de Vidas Secas, e o Luiz da Silva ficaram felizes em ver, materializado, o seu criador terreno.
— Saudações, mestre Graça! — Fala Luiz da Silva
— Como vai, Luiz?
— A vida aqui é maravilhosa, Seu Graciliano. Não sinto mais a angústia que sentia quando morava na terra. Logo se aproximou Fabiano:
— Como vai, mestre Graça. Não sinto mais sede nem fome aqui. A seca não mais existe. Nisso Paulo Honório se aproxima meio desconfiado, ressabiado; ainda não fora para as penitências obrigatórias:
— Não podia ter feito para mim uma personagem melhor não!? Ora, que personagem triste você colocou em mim, devia perguntar antes de determinar o que seus personagens seriam, quem já se viu determinar o destino das pessoas? Nisso um anjo chegou muito interessado na conversa. O anjo gostava de escritores, sempre parava para conversar com grandes escritores como Vitor Hugo, Machado de Assis, Voltaire, Charles Dickens, Dostoievski, Mário de Andrade, Eça de Queirós entre outros. No céu não existem vários idiomas, mas apenas um único idioma, assim, escritores famosos de todos os países puderam se encontrar nas mansões celestes e colocar os assuntos em dia em uma única língua, o celestês.
— Quer dizer que você é o famoso Graciliano Ramos!? O autor de estilo indecifrável? O autor de Vidas Secas, São Bernardo, Angústia, Viagem?
— Sim, fui eu que escrevi aqueles trabalhos medíocres! — responde Graciliano.
— Medíocres!? Ora, não seja modesto; o Brasil adora seus livros, você está sendo lido até no exterior, Graciliano. O problema é que alguns dos seus personagens que aqui também estão, reclamam muito por você  ter dado a eles um tipo que eles não queriam.
— É isso mesmo! Por que me criou grosseiro daquele jeito!? — quer saber Paulo Honório, o mais enfezado.
— Ora, Honório, eu escrevi aquilo que você era. Mas minha intenção era generalizante. Aproveitei seu personagem para utilizar como denúncia social. Eu queria mostrar o capitalismo e sua ideologia destrutivista para o homem. Quando você reflete no final do livro, aquela reflexão era a idéia que eu tinha do fim do capitalismo. Eu escrevi você daquele jeito porque com certeza os homens iam pensar melhor acerca da futilidade das coisas da vida. Eu queria denunciar que a ambição materialista e capitalista não preenchiam o vazio existencial do homem. Aí me veio a idéia de criar a Madalena que seria o oposto de você. Você representaria o capitalismo explorador do homem e Madalena representaria o oposto a você, ou seja, ela seria comunista. “Ouviram-se aplausos do anjo literato”.
— Não vejo graça nenhuma. Eu fui a cobaia, então! – completa o Honório.
— Não, Paulo, você ficou famoso porque fez muita gente entender que ser materialista apenas, não vale a pena, que temos que ser solidários com as pessoas. “Ouviu-se novos aplausos”.
— Agora quero ver como é que você vai se sair explicando a personagem desgraçada que eu fui. — Emenda Marina muito aborrecida.
— Marina, minha boa Marina. Você representa a mulher sertaneja e brasileira vítima do machismo do homem naquele começo de século. Eu coloquei em você características da mulher nordestina sofredora. Na verdade, você representaria no livro milhões e milhões de pobres mulheres sofridas do nosso antigo Nordeste brasileiro. Vocês não tinham direito a votar, não participavam das conversas do marido, e viviam apenas para cuidar dos filhos e do esposo. Eu quis mostrar em você, o universo humano da mulher nordestina sofredora.
— Viche nossa senhora! Tudo isso! – Marina já começa a ver as coisas de forma diferente.
— Na verdade, em todos os meus livros eu procuro denunciar a triste realidade dos homens sertanejos vítimas do descaso governamental. A seca no Nordeste, meus amigos, não é apenas por problemas climáticos, é acima de tudo um problema político. Se eles colocarem água para o povo em abundância, como conseguirão ganhar votos se eles enviam os carros pipa para abastecerem as comunidades nas vésperas de campanha? O sofrimento do povo do Nordeste do Brasil tem causa não apenas climática, mas acima de tudo política.
Ouvem-se novos aplausos no céu, é o anjo literato.
— Puxa saco! – fala baixinho Paulo Honório de si para si mesmo. Não foi ele que ficou longas noites em meditação! Não foi ele que teve de ficar várias noites em claro tentando entender o sentido da vida! Não foi ele que teve de ficar acordado várias noites porque o pio daquelas malditas corujas não deixava ninguém dormir.
— Paulo, tá na hora das suas penitências. Vejo que você ainda tem muita malícia no coração e precisa  se isolar em contrição ao Soberano. —  Conclui o anjo.
Novo grande estrondo se fez ouvir no céu, apesar do terrível barulho não chegar a ferir os tímpanos de ninguém; era estranho, ninguém reclamava do barulho. Falanges de anjos agora passeavam em todos os cantos; saíam de todos os lados. Anjos azuis e brancos traziam taças nas mãos, de cores variadas, representando coisas diferentes. Novamente o céu se abriu e surgiu um cidadão nascido em Itabuna, Bahia, no ano de 1912. Estamos falando do nosso querido Jorge Amado de Farias, o compadre do Mestre Graça. Escritor famoso, escreveu nada mais nada menos que Gabriela cravo e canela, Dona flor e seus dois maridos, Tenda dos milagres, Tieta do Agreste entre outras obras antológicas. O céu todo o saudava.
— Não acredito, é você, Jorge? — Admira-se Graciliano.
— Claro que sou eu meu bom e velho Graça. Acha que eu iria para o inferno?
— Quer que eu fale a verdade?
— Ora, mas claro!
  Não acreditava muito não que você alcançaria o céu! Você era muito apegado às divindades do candomblé e cultos afros lá na Bahia. Eu achava que o céu não compactuava com essas crenças.
— Nem te conto a penitência que tive de passar, meu velho, nem tanto pelo tipo de adoração que tinha, e sim pelo sujeito enjoado que eu fui.
Nesse momento, Graciliano Ramos observa ao longe uma figura feminina que o observa atentamente. Ela tem os olhos bonitos, pele suave, cabelos levemente cortados, parece exalar o aroma das deusas... algo o intriga naquela mulher. Alguma coisa parece estranha. Deseja uma aproximação, assim o faz, aproxima-se um pouco mais, mais um pouco, de repente, não acredita:
Heloísa está a sua frente. Tinha sido sua esposa na terra. Ele não conteve as lágrimas que principiavam em cair suavemente. Um filme começava a passar em sua memória ainda não totalmente celeste. Fragmentos de memórias terrenas ainda estavam presentes naquele aspirante à vida eterna. Tais fragmentos de memória terrenos responsabilizaram-se em trazer à lembrança do Mestre Graça, em flashes, resquícios de um passado: lembrou do padre Macedo, do jornalzinho O Índio; do primeiro encontro dele com Heloísa na igreja, lembrou das cartas, da prefeitura de Palmeira dos Índios, lembrou de suas viagens... estava chorando. Alguma coisa inexplicável estava acontecendo com ele. Enquanto olhava para Heloísa, milhares de slides passavam pela sua cabeça; uns, bem rápidos, outros, mais lentos. Lembrou da mãe, dona  Maria Amélia, e veio-lhe à lembrança de um sertão distante, quente e árido que muito contribuiu para sua formação ideológica; veio-lhe à mente Buíque. A casa de comércio do pai. Viu o pai passar diversas vezes naquela visagem, severo, rígido, decidido. Teve medo, medo da rusticidade do pai, dos gritos... visualizava naquele momento de transe uma pracinha simples e pobre de uma cidadezinha interiorana, Quebrangulo, via a casa branca encostada na praça, casa em que nascera naquele longínquo ano de 1892. Onde estavam todos? Cadê Teotoninho Sabiá, Padre João Inácio, O Moleque José, Chico Brabo, cadê Chico Brabo? Não estava entendendo nada. Estava vivo? Morto? O que estava acontecendo? As visões continuavam. Agora via homens condenados pela justiça trabalhando na construção de uma estrada. Viu uma máquina de escrever e um homem eneblinado em fumaça de cigarro, escrevia um relatório, precisava dar satisfação ao governador do estado. Foi transportado a outro país. Viu-se vagando solitário pelas ruas gélidas de um país vestido de branco; da boca, saía fumaça; do espírito, esperanças. Aquelas pessoas estavam felizes, muito felizes naquele país, afinal, lá tudo era comum. Eis que ouve uma voz fugidia: “Graciliano, ô Graciliano”! – não consegue se fixar nesse chamado. As impressões continuam. Via agora meninos barrigudos e sujos num país seco e tórrido... de água e de espírito. Entristecera. Estava ficando louco? O que era aquilo? O que lhe estava acontecendo? Por que aqueles meninos barrigudos lhe apareciam assim? Chupando aquela chupeta encardida pendurada em um pano imundo?  Ouvia agora um choro de criança, o lugar estava escuro, apenas um resto de vela insistia em manter-se acesa. Uma mulher se levantava, lívida, prestativa, paciente. Consolava um menino chorão, seu filho. Percebeu que o choro da criança se mesclou em vozes chorosas, graves, sérias, taciturnas. Vozes de adultos em aglomeração taciturna, pesada, solene e triste. Fora transportado agora para outro lugar. Via agora um esquife teso deitado num caixão. Pessoas choravam a sua volta. Mulheres sérias, de preto. Homens que tiravam o chapéu em sinal de reverência, também usavam preto. Tenta aproximar-se para ver quem era aquela figura deitada naquele triste caixão. Sente temor... a morte é algo tão deprimente! Sente medo. Um cheiro de flores vencidas ajuda a petrificar o ambiente, sente um frio mórbido e gélido na espinha. Deseja aproximar-se para ver quem é aquela triste figura deitada, precisa de coragem. Aproxima-se...aproxima-se... de repente, dá um grande e terrível grito. O céu sente aquele grito sobremaneira. “Sou eu”! “Sou eu”! Sou eu”! – cai em pranto e desfalece. Acorda instantes depois, está sozinho numa sala imensa de paredes azuis. Em cada parede milhares de quadros ilustram cenas de suas obras e de sua vida. Agita-se um pouco, agita-se muito, devaneia. Sente-se perdido, distante da realidade. Será tudo um sonho? Agita-se ainda mais, mais, mais...
— Calma Graciliano, você está passando por uma fase de limpeza da memória, era necessário que você revivesse todas essas cenas da sua fase na terra – Intervém um anjo.
— Mas percebi que não fui enterrado na terra em que nasci. Era um outro lugar muito diferente daquele em que fui criado. Por quê? Por que fui enterrado numa terra estranha às minhas origens?
Heloísa se aproxima e comenta:
— Você ficou famoso Graciliano, acharam melhor enterrá-lo na cidade que enterrou os grandes da literatura e...
— Mas todos sabem que eu era indiferente à Academia, trabalhava não para a glória própria e sim para sustentar-me e sustentar a família. Acho que um homem deve permanecer fiel às suas origens até o último dia.
— Ninguém duvida que você era assim. Você realmente foi uma alma que não gostava de grandes alardes, conclui a ex-esposa.
— Nisso chega Paulo Honório um pouco mais calmo.
— Pensando direitinho, Graciliano, acho que...quer dizer... pensando por outro lado... acho que entendi o porquê de você ter criado uma personagem tão miserável quanto eu...é... acho que entendo agora. Da próxima vez, todavia, vê se arruma outro para ser o capitalista explorador. Não quero mais ser o Paulo Honório; contento-me em ser, talvez, numa outra escala da vida, uma pessoa melhor. Nisso entra Luiz da Silva dizendo que apesar de ter gostado de ser o Luiz introspectivo de Angústia, gostaria mesmo de ser era o Lobisomem, seu vizinho no romance Angústia.
— O <a title="" style="mso-footnote-id: ftn6" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn6" name="_ftnref6">[6]</a>Lobisomem!? Tem certeza? – admira-se Graciliano. Por que gostaria de ser O Lobisomem?
— Ora, O Lobisomem é o ser mais consciente que já conheci em seus personagens.
— Ainda não entendi!
— Não entendeu? Como não entendeu? Afinal você cria um personagem e não sabe o porquê dele existir? Então se não sabes eu sei, meu caro! Certamente você o criou não levando em conta as razões implícitas no estilo de comportamento adotado por Lobisomem.
  Bem, então nos explique. Aproximam-se alguns escritores e o anjo literato para ouvirem o que Luiz da Silva tem para dizer. Começa:
— Lobisomem leu quase tudo que a ciência literária produziu, digo de mais relevante, claro. Passaram-lhe pelas mãos verdadeiras lendas da literatura brasileira e mundial. Descobriu os recônditos da literatura espanhola de Cervantes e seu <a title="" style="mso-footnote-id: ftn7" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn7" name="_ftnref7">[7]</a>Dom Quixote. Descortinou o mundo inglês com Charles Dickens e suas obras de cunho social tais como As aventuras do Sr. Pickwick, A Loja de Antiguidades entre outros. A literatura alemã também lhe veio com o senhor Goethe e seu romance Werther, obra terrível que influenciaria muitos jovens literatos brasileiros a viverem esperando as virgens sonhadas que nunca se materializavam. Achou Machado de Assis um romancista fenomenal e sua literatura misteriosa. Quem diabos poderia provar que Capitu traíra Bentinho em Dom Casmurro?
  Cuidado com as palavras, Luiz! — Admoesta-o o anjo.
— Perdão, meu anjo!
— Mas continue, continue, estou achando interessante! —  Completa o anjo. Todos estão abismados da sabedoria de Luiz da Silva. Ele continua.
— Lobisomem, Graciliano, era muito diferente do perfil que a sua-nossa velha sociedade dos anos 20 e 30 traçava dele. Era um homem culto, muito culto. Como eu estava dizendo, Lobisomem vivia anestesiado pela literatura. O mundo italiano também veio até ele através de Leonardo da Vinci. E o que dizer do mundo francês? O mundo francês trouxe-lhe grandes lições com o escritor e filósofo Voltaire e seus livros filosóficos. Quem diab... desculpa, aliás, quem poderia explicar por que o livro Cândido desse escritor também se chamava O Otimismo, se ele só narrava desmantelos sociais? A mente de Lobisomem fez inúmeras viagens pelo mundo da literatura, buscava respostas escondidas, respostas para o propósito da vida, respostas irrespondíveis, proibidas para o homem. O isolamento de Lobisomem, e sua aparência descuidada, era porque ele vivia mergulhado quase o tempo todo em livros. Não tinha tempo para as frivolidades dos meios sociais.
— Quer dizer que ele queria saber qual o propósito da vida?- quer saber o anjo?
— Exatamente! — responde-lhe Luiz.
— E ele conseguiu a resposta?
— Deve estar ainda procurando.
— Mas ainda não morreu? — continua o anjo.
— Ele sim, mas muitos <a title="" style="mso-footnote-id: ftn8" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn8" name="_ftnref8">[8]</a>Lobisomens ainda estão por aí.
— Como assim, Luiz? — pergunta Graciliano abismado com seu personagem.
— Existem vários tipos de seres humanos, dentre esses, poderíamos citar dois tipos de pessoas em especial: <a title="" style="mso-footnote-id: ftn9" href="http://www.blogger.com/post-create.g?blogID=4529308829906176895#_ftn9" name="_ftnref9">[9]</a>as que vivem com intensidade e as que simplesmente vão levando. As primeiras são firmes consigo mesmas, aproveitam as oportunidades, nunca se sentem confortáveis por muito tempo. As últimas jogam com segurança. Nunca se forçam. Um ano se emenda no outro, porque os anos são na verdade a mesma coisa. Dessa forma, Lobisomem estava, ideologicamente, anos-luz na frente de seu tempo, porque os poetas, escritores e pensadores, apesar de viverem em épocas específicas, não pertencem àquela época. Pertencem a uma dimensão incompreensível aos humanos comuns.
— Nossa, Luiz, que bonito, adianta-se um dos ouvintes. Faz-me lembrar a fábula da cigarra e da formiga de La Fontaine. Enquanto a formiga trabalhava pesado, a cigarra cantava. Durante todo o dia via-se as formiguinhas sábias suando penosamente para juntar o pão de cada dia; enquanto isso, a cigarra se ocupava apenas da boemia. Vivia a curtir os arroubos da época boa. Cantava e cantava. Mas como tudo na vida passa, a época favorável passou, foi embora o verão da existência. Um inverno tremendo se aproximava, ameaçador, terrível. As formigas não sentiram nem um pouco aquela época das dores e das grandes dificuldades, afinal, passaram a vida toda a ajuntar mantimentos, a garantir a espécie...
— Epa! Isso é papo furado! — Adianta-se Paulo Honório. — Eu também passei a vida toda para conseguir a fazenda São Bernardo, toda a minha vida. O que consegui com isso? o que consegui? Me diga, vamos? Consegui meia dúzia de rugas na cara, mãos esfoladas, perdi Madalena, filho, amigos, perdi a vida toda em viver só para ajuntar. Esqueci de viver.
— Silêncio, Paulo, deixe nosso amigo continuar a sua narração.
— Bem, como eu estava dizendo, as formigas não tinham mais o que temer, porque estavam bem abrigadas com os provimentos. Agora é a vez da cigarra, chegou para ela o inverno da existência e, não tendo provimentos nem moradia, dirige-se ao formigueiro e bate-lhe à porta para pedir abrigo e ajuda.
— E o que as formigas fizeram? Deram abrigo a ela. — Quer saber um ouvinte.
— Que abrigo que nada, morreu de frio e de fome. Ah ah ah...
Todos ficam em silêncio, ninguém achou graça.
— Ora, vocês não acham que foi justo o comportamento das formigas? —  pergunta o contador de histórias.
Paulo Honório, arrependido do que fora em vida, aproxima-se do homem e pergunta:
— Morrendo uma formiga, faria alguma falta? — questiona Paulo Honório.
— Ora, mas claro que não, afinal elas são muitas e...
— Mas suspeito que todos sentiram a falta do canto alegre e mavioso da cigarra, quando as formigas novamente voltaram ao trabalho, não acha?
— Bem, é verdade, isso é verdade! — conclui o contador de histórias.
— Entendeu a moral da história? — pergunta Graciliano.
— Ainda não!
As cigarras são os poetas da vida, aqueles que sabem viver a vida de forma intensa, sabem usufruir a brevidade da vida; as cigarras não vieram ao mundo a negócios, e sim a passeio. O mundo todo sentiu a falta do canto da cigarra e isso fez o mundo mais triste. Da mesma forma, os homens sensíveis, os poetas e escritores, quando morrem fazem falta; os homens comuns, não fazem falta a ninguém; só a família, talvez, e por pouco tampo.
Ouviram-se aplausos no céu. Graciliano continuou.
— As formigas, apesar de serem sinônimos de trabalho, representam as pessoas que vivem no mundo como se ele fosse eterno, vivem apenas para o trabalho, e não conseguem ver beleza nas flores, nos pássaros, na natureza. As formigas representam o capitalismo desenfreado, um capitalismo que envereda pelo mundo do trabalho especulativo, deprimente, hediondo. Um trabalho que não enaltece o homem, mas o escraviza. Vocês sabiam que as formigas trabalham em tempo integral? Isso seria exemplo de vida? Não, senhores, prefiro o silêncio dos loucos, o silêncio dos pensadores, o silêncio daqueles que se encantam com  as flores sem despregar os olhos nas oportunidades de crescimento. Devemos sonhar com os pés no chão; afinal, não se vive só de poesias, mas de alimentos também. Conciliar coração e razão é o segredo dos sábios.
Mais aplausos são ouvidos no céu.
— Espere aí, mas estávamos falando do lobisomem. O que tem a ver Lobisomem com tudo isso? — quer saber o anjo literato, protetor dos literatos.
— Ora, meu protetor, tem tudo a ver. Lobisomem representa o homem inconformado em viver sem respostas para as grandes perguntas da vida, tais como quem eu sou, de onde venho e para onde vou? Dessa forma, vivendo em seu mundo particular, longe de se assemelhar com os homens comuns, tinham-no por louco e insensato.
— Agora entendi. — Concorda o anjo.
Nesse mesmo instante, um barulho tremendo de prato caindo faz o homem acordar assustado e suado de longas oito horas de sono. Era o dia 11 de janeiro de 1930, precisava redigir o 2º Relatório de sua administração na prefeitura de Palmeira dos Índios e enviá-lo ao Governador  do estado de Alagoas. “Que sonho profético”, estranhou. Aproximou-se da janela e olhou para o céu. As nuvens estavam em seus lugares, deslizavam tranqüilas; as pessoas passavam normalmente para mais um dia de trabalho. Tudo estava normal, tudo estava como sempre, com exceção de um bode que comia as plantas do jardim de uma inquilina valente no outro lado da rua. Todos passavam e diziam “bom dia”, ao que respondia, bom dia! Tinha sido apenas um sonho, todos tinham sonhos, ora!. Não tinha por que se preocupar; afinal, sonhos são sonhos! Mesmo que sejam repletos de realidade.

Erisvaldo Vieira da Silva
Palmeira dos Índios, julho de 2002.
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A ITALIANA
Conto premiado pela LITTERIS EDITORA DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO

Era a terceira vez em um semana que o Manuel chegava a casa, tomava um banho rápido, comia qualquer coisa e saía apressado. Naturalmente, aquele comportamento atípico, provocara na mulher dele uma estranheza, como era de se esperar.
Feita a rápida refeição daquela noite, saiu mais uma vez às pressas. Foi à farmácia, ao mercado. Comprou algumas coisas: especificamente pão, queijo, manteiga, refrigerantes e uma garrafa de rum, sua predileta bebida. Dirigindo seu carro, enfrenta o caos de sempre no trânsito. “A vida deveria ser melhor na Idade Média”, reflete absorto em pensamentos vagos. Quinze minutos depois, chega à Ponte da Amizade e observa no horizonte os últimos raios de sol pintando de amarelo-ouro aquele céu de fim de tarde. Sorri, encantado. “Como é bela a natureza divina, pena que um dia vou deixar tudo isso!” — mais uma vez meditando sobre a vida e a sorte dos homens. Pisa no acelerador e em cinco minutos pára o carro à porta do Hotel Imperial. Retira os pacotes, levanta os vidros, trava as portas.
— Boa noite, seu Manuel! — É o porteiro do hotel que fala.
— Boa noite, Antônio, e então? Ela já chegou?
— Acho melhor o senhor mesmo ir verificar. — Responde o porteiro combinando satisfação e mistério. Pelo semblante do recepcionista, Manuel logo deduziu que não iria ficar só naquela noite. Assim, sobe o lance de escadas feito um foguete. Não via a hora de ter a Italiana nas mãos, acariciá-la, contemplá-la, vê-la de perto depois de tanto tempo de ausência. Ora, viera direto da Itália só para ele! Com ela, certamente suas noites de monotonia tornar-se-iam excitantes. Já tivera outras, é bem verdade, mas nenhuma delas tinham o carisma e a sensibilidade da Italiana. Novinha, cheirando a novo, a danada bem que levantaria o astral do velho Manuel. Suas formas perfeitas, revestidas com os tributos de uma jovem, com certeza faria o bom Manuel viver de novo os arroubos dos sonhos adolescentes. Certamente ganharia fôlego novo, pois teria ao lado aquela que materializaria seus desejos mais secretos, suas intenções mais cobiçadas.
Vencendo o lance de escadas, põe ele a chave na porta nervosamente, quando o porteiro lhe aparece:
— Seu Manuel, tem uma senhora lá na portaria que quer vê-lo.
— O quê!? Uma senhora? Quem é? — Espanta-se o homem, sobremaneira.
— Não faço idéia, mas parece bem nervosa.
— Diachos!
É a mulher do Manuel que o havia seguido. Pego de surpresa e conhecendo o gênio intempestivo de sua senhora, limitou-se a calar logo que a viu. Deixaria as discussões para dentro do carro na volta para casa.
— Quer dizer então, senhor Manuel, que depois de velho o senhor resolveu arrumar amante!? — Bronqueia a mulher com ares nada amigáveis. O homem não emitia palavra, concentrando-se apenas no trânsito. A mulher continuou a despejar-lhe do veneno:
— Não vai falar nada? Deve ser interessante ser flagrado assim, não é? Um homem velho, bom de procurar um livro para ler, inventa de correr atrás dessas bichinhas da vida. Não tem vergonha não? Fique você sabendo que comigo você não dorme mais... Não estou nada disposta a contrair doença do mundo. — Nesse momento o velho rádio amador do carro chama:
— Oi, Antônio! — O porteiro a falar.
— Seu Manuel, o senhor deixou alguns pacotes na porta do seu quarto, que faço com eles?
— Vamos, Manuel, responda a seu cúmplice. Mande-o fazer a comidinha dela... — ironiza a mulher.
— Guarde-os Antônio, deixe apenas na geladeira os refrigerantes. O rum pode abrir e deixe-o sobre a mesa, e também arrume alguns copos, uns dois.
— Tudo bem, seu Manuel, pode ficar tranqüilo que providencio tudo por aqui.
A mulher do Manuel, sentada na cadeira paralela, mais parecia uma onça acuada, não acreditava no que estava ouvindo do próprio marido. Olhou-o cheia de ódio, tanto ódio que lhe faltou palavras para despejar sobre o marido.
— Seu verme! Pare esse carro agora, pare! — Gritou ela com a energia de uma fera ferida. — Pare se não eu pulo desse carro. E ameaçou abrir a porta.
— Se pular, morre! Não seja louca! — Enfatiza Manuel numa calma aristotélica.
— E não é isso que o senhor quer? Que eu morra para ficar com aquela sirigaitazinha? Não é isso que você quer?
— Ora deixe de drama!
— Drama!? Drama!? Você disse drama!?
A pobre coitada chegou à casa afônica de tanto praguejar contra o marido infâmias, palavrões, blasfêmias, inclusive algumas impublicáveis aqui.
Esse Manuel já beirava a casa dos cinqüenta e cinco anos de idade. Durante mais de trinta anos de casamento sempre fora fiel à esposa, mas, ultimamente andava de querer dedicar-se a uma nova atração que desde criança o perseguia. Ele sonhava com isso todas as noites. A esposa não lhe fora de um todo ruim, todavia o prendia em casa constantemente, e isso o estava levando à loucura. Agora, perto dos sessenta, resolvera de vez recuperar o tempo perdido, ou pelo menos reviver aquela antiga e secreta propensão. Destarte, alugou temporariamente um quarto de hotel, comprou alguns móveis, um rádio, um toca discos, uma cama confortável. Faria daquele recinto o seu ponto de encontro. Encontrar-se-ia ao menos duas vezes com a Italiana, porque todo dia era impossível. Nem os jovens agüentam tanto. Por mais que o manejo com coisas jovens fosse deveras excitante, não agüentaria uma carga muito forte de atenção, afinal, beirava a casa dos sessenta. Assim, decidiu ir vê-la umas duas vezes por semana, estava bom assim. Sua sorte era que a estrangeira não tinha o ímpeto da cobrança ostensiva das mulheres mal amadas, até que ela era pacífica, tranqüila e isso era tudo o que ele queria.
Já homem feito, entrando quase na “melhor idade”, o pobre Manuel olhou para o que fora até então: um homem que sempre fez as vontades da esposa. Agora era a vez de ele fazer suas próprias vontades. A esposa que se contentasse. Queria por mais que tudo sair daquela monotonia exaustiva de um relacionamento centralizado apenas em uma pessoa. Ninguém é feliz tendo amado apenas uma vez, raciocinava lembrando a letra da música do falecido Raul Seixas. Ora, o amor é coisa sublime que nasce nos terrenos mais inóspitos; não marca audiência, não ironiza, não oprime, não cansa. Amor é amor. Ama-se os animais, as florestas, os pais, os filhos, ama-se também uma mulher e, às vezes, até mais de uma. Quem pode mandar no terreno dos sentimentos?
Estava decidido e pronto! Não já comprara casa própria? Não dispunha de um carro bonito na garagem? Não já criara e formara os filhos? O que mais ele poderia fazer? Sentar numa cadeira com a boca escancarada cheia de dentes esperando a morte chegar? Não, de jeito nenhum faria isso. Iria mesmo era se entregar, lavar-se com os perfumes do corpo e da alma de uma jovem recém saída da cidade italiana de Veneza e que lhe serviria de companheira nos seus momentos de solidão. Por que teria que morrer na mesmice daquelas horas de tédio em sua casa? (dele). Lembrou de algo que uma vez leu acerca de um músico que deixou até a esposa para poder compor... Não lembrava bem o nome dele, mas sabia que este músico se tornou um dos maiores compositores de todos os tempos; suas músicas atravessaram centenas de anos e ainda hoje são tocadas em todas as grandes sinfônicas do mundo. Tudo bem que o caso dele não era a música, era a Italiana. Mas, tudo era amor, e contra o amor não se luta, simplesmente se aceita. — Raciocinava o Manuel no silêncio aterrador do quarto. Lá fora, naquela noite sem Lua, barulhos esporádicos avisavam que existe ser vivente acordado, talvez alguns com o mesmo dilema dele, talvez outros não. Uns gemem, outros cantam, outros xingam, outros passam solitários, outros acompanhados. A noite avulta-se, cresce, lança seus tentáculos sobre as casas apagando paulatinamente as luzes. Manuel sai do quarto e adormece na poltrona da sala...
O dia amanhece, finalmente. Uma indiferença entre o casal é a única diferença naquela manhã sem risos. Os móveis são os mesmos, o sofá é o mesmo, o cachorro late do mesmo jeito, o rádio cospe notícias corriqueiras: desvios de verbas ali, falcatruas acolá, políticos corruptos descobertos, inflação alta, juros de judeu na economia. Ele levanta retorcido do sofá, a cara barbada. Espreguiçasse. Dirige-se ao banheiro na ponta dos pés para não denunciar a sua presença. Apronta-se e sai com a mesma roupa do dia anterior. Passaria numa loja e compraria uma camisa para ir ao trabalho. Assim o fez e passou-se o dia sem o Manuel voltar para casa. A noite mais uma vez chegou e como não o trouxe para casa, a esposa convocou os filhos.
— Vamos buscar o pai de vocês. Quero que todos vejam a que ponto chegou aquele homem depois de velho.
— Mas, mãe, por que a senhora não espera ele chegar? Vocês conversam e...
— Se não quiserem ir, vou só, mas não perco a oportunidade de desmascarar aquele velho safado. — Percebendo a convicção da mãe, resolveram ir todos juntos, ao menos controlariam a fúria da velha genitora, caso houvesse alguma necessidade.
— Qual o quarto que está o Manuel? — Dirige-se ela ao porteiro de forma decidida.
— Quarto 25, senhora, mas o senhor Manuel disse para não...
— Ora deixe de conversa! Você também é safado. — E subiu expelindo ira por todos os poros.
— Mãe, isso não é certo, a senhora já é de idade, deixe isso pra lá, mãe! — Pede-lhe o filho mais novo. Ela não lhe deu ouvidos.
Chegando à porta do quarto:
— Toc, Toc, Toc! — Não ouvem reposta.
— Toc, Toc, Toc! — Bate mais forte.
— Está aberta! — ouvem lá de dentro alguém falar.
Entram todos de uma só vez.
É inacreditável o que vêem lá dentro: a mulher oficial do Manuel enche-se de vergonha pelo que contempla. Manuel, apenas de roupas sumárias, sem camisa, sentado na cama, apalpa com os dedos a Italiana em movimentos repetidos e alternados. Percebe-se que a estrangeira está toda molhada, brilhante, como quem tivesse levado um banho com óleos essenciais. No momento que entraram, foi possível ouvir da Italiana aqueles barulhos seqüenciais, constantes, como quem desfruta e se regozija por estar sendo tocada com tanta maestria. Manuel, o velho Manuel, debruçado sobre ela, parece usufruir um gozo inefável, visto já estar suado dos movimentos constantes e repetitivos. Mãe e filhos não acreditam: a amante do Manuel pára, silencia, logo que ele se levanta.
Era uma máquina de escrever italiana da década de 50. Só ela poderia materializar os sonhos do Manuel de um dia editar um livro. Era essa a sua paixão. Era apaixonado pela literatura desde tenra idade, mas a mulher não dava a mínima para esse seu hobby; assim, alugara um quarto em um hotel e faria daquele pequeno recinto o seu ambiente de trabalho. Quem sabe ainda não seria um grande escritor um dia?
Nem tudo que parece, é.




_______________________________O CÉU E O INFERNO


Paulo acordou com uma vaga sensação de que já esteve nesse mundo outras vezes. Levantou-se da cama como quem acabara de levar uma surra. Moído. Espreguiçando-se, abre a janela, deixa entrar o frescor da manha e não tem dúvida: “Já estive aqui nesse mundo outras vezes”, enfatiza baixinho de si para si mesmo. Lá fora, algumas nuvens negras, no lado ocidental, põem um véu cinza sobre a luz matutina, embaçando o início da manhã. Mesmo assim, o céu está belo, singular.
Mas por que logo naquele dia estava ele sentindo aquelas raras sensações? Será que o padre aprovava aquela idéia? E a madre, o que diria a respeito?  Lembrou que a Bíblia diz que o homem morre uma vez vindo logo depois o Juízo Final. Assim rezou sua cartilha desde que se entendia de gente. É céu ou inferno. A propósito, “será que o inferno existia mesmo? Fogo... brasa... ranger de dentes... fornalha. Coisa terrível! Alguém já esteve lá para ter essa certeza?” Refletia o Paulo em vagas divagações. “Como poderia um ser humano agüentar tanta dor? Para sempre... “e como poderia sentir dor se não era mais humano de carne e osso? Espírito sente dor?”
Logo em seguida lhe veio a idéia do Céu. Será que o Céu realmente existia? Refletiu, refletiu, refletiu e algumas deduções pipocaram em sua mente. O Céu. Como seria o Céu? Que graça sentiria no Céu se lá não se come, não se bebe, não se fuma, não se dança, não se ama...? Ora, que tipo de prazer poderia existir em um lugar assim? Entalou, confuso. “Eu já estive aqui antes”, dessa vez falou um pouco mais alto e a esposa, que estava ao lado, concluiu:
— Mas claro, tu vive de acordar cedo e ficar aí feito bobo nessa janela.
Paulo não discutiu, pois há muito tinha descoberto que a esposa, coitada, era formada na faculdade cujas disciplinas se resumiam apenas em tomar conta da casa. Lavar, passar, varrer, cozinhar. Nessas quatro disciplinas ela sabia de tudo e nunca mais resolveu estudar outras disciplinas. Metafísica para ela era apenas uma palavra “difíci”. Lembrou Paulo de certo filósofo de nome Epicuro que ousou questionar a bondade e a onipotência de Deus. “Se Deus é bom, por que permite a dor e a guerra no mundo? Se é onipotente, por que deixa que ocorram tantas tragédias como aquela da Ásia, na qual milhares de pessoas morreram inclusive criancinhas?” Entalou novamente, absorto em pensamentos. Por alguns segundos desejou nunca ter estudado esse tal de Epicuro.
— O café já ta na mesa, Paulo. Vai ficar quanto tempo aí, feito bobo?
Outra vez Paulo não discutiu. Sabia que falar desses assuntos com a esposa era o mesmo que conversar com a jumentinha Anastácia. Inútil. Pois ela não compreenderia e ainda por cima o mandaria ir à Igreja rezar, dizendo que ele estava com idéias de ateu. O que ela entendia bem era de casa. Lavar, passar, varrer, cozinhar... Ela era formada nessas artes. Apenas nessas disciplinas e toda a sua vida se resumia apenas nisso. Lavar, passar, varrer, cozinhar.
Foi ao banheiro, escovou os dentes, esfregou a cara cheia de pêlos. Olhou-se demoradamente no espelho, viu os primeiros cabelos brancos brigando com os pretos, reivindicando, à força, por espaço. Lembrou-se dos Sem-terra. Nada a ver! Com dificuldade isola o fio de cabelo intruso entre os dedos e o puxa. Uma vez, duas, três, quatro... “Peste de cabelo branco que não sai!” De uma arrancada certeira põe por terra o intruso fio de cabelo branco — sinal dos tempos. Paulo envelhecia. “Será que vou nascer de novo”? Onde? Terei a mesma aparência? — Não queria mais ter a mesma aparência. Estaria ele beirando as raias da loucura? Estava ficando doido? Não, certamente que não. Lembrou de um pensamento da Clarice Lispector que dizia “enquanto existirem perguntas sem resposta, continuarei escrevendo”. Não estava ela também preocupada com a fugacidade das coisas do mundo? E por que ele, Paulo, não podia também pensar nas coisas abstratas da vida?
— Paaaaulo, o café já faz horas! Depois não me venha reclamar da comida fria. — Berra-lhe mulher.
— Mulheres, mulheres, mulheres... Quem já se viu café fazer horas? Não entendem nada de metafísica. Ou será apenas a minha?
Por um instante desejou ter outra mulher. Desejou uma que gostasse de metafísica.  Pensou numa mulher que visse o mundo com um pouco do olhar do espírito. Um pouco com o olhar dos poetas, que um pouco de poesia não faz mal a ninguém. Sentiu por um lapso de tempo a ausência de alguém que falasse a sua língua. Mas sua mulher amava mesmo eram as notas de reais. Sina. Com essa idéia, de repente, não mais que de repente, enfezou-se e não quis tomar o café da manhã. Arrumou-se. Penteou-se. Perfumou-se e saiu sem destino. A barriga seca, reclamando o café quente da mulher fria. Saiu sem destino. Sem rumo e sem prumo em busca não se sabe de que e nem onde achar. Simplesmente e inusitadamente saiu.
Umas duas horas depois vão encontrá-lo ao pé de um pequeno morro ali perto. Sentado, pernas cruzadas, braços sobre os joelhos, a meditar. Estilo bem à oriental. Vendo a mulher dele aquela cena, concluiu:
— Definitivamente meu marido pirou de vez! Ao que todas as vizinhas dela também deduziram “É, enlouqueceu! É isso que dá a pessoa estudar demais.” E o Paulo lá, a ver pequenos duendes verdes, sentindo o vento acariciar-lhe o rosto em lufadas leves e perenes. Estava ZEN.
Quem não estava nada ZEN era sua esposa e as comadres.
Nesse ínterim, chega o doutor da pequena cidade com dois de seus acólitos. Dirige-se à mulher do Paulo:
— É aquele o seu marido? — e aponta para o Paulo.
— Sim, senhor. O que o senhor acha, doutor?
— Está louco. Vamos levá-lo. — E levaram mesmo.
Foi difícil e complicado o Paulo provar que aquela prática era uma prática oriental de meditação e que ele não estava louco.
Aquela cidade ainda respirava os ares do medievalismo que dominou a Europa e o mundo nos séculos XIV e XV. Trevas culturais.
Tomou medidas drásticas: mandou a mulher arrumar um roceiro para viver com ela e foi embora daquela cidade. Na saída da cidade, ainda no ônibus, concluiu:
— Rebanho de gente ignorante. — E nunca mais se ouviu falar do Paulo por aquelas bandas.

“A maior loucura que um homem pode fazer nesta vida é deixar-se morrer.”
(Miguel de Cervantes, autor de Dom Quixote).

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TRAGÉDIA FAMILIAR



Todas as manhãs, logo cedo, eu acordava na hora certa. Em minha casa não precisávamos de despertador. Desde que inventei de comprar um casal de periquitos australianos, por influência de minha sobrinha, Maria Clara, nunca mais foi necessário ligar despertador. Para que despertador se o relógio de Deus colocado no instinto dos pássaros nunca falhava? Podia fazer chuva ou sol; inverno ou verão, frio ou calor, não importava o clima, lá estavam eles a cantar logo no comecinho das manhãs como arautos do tempo. Bia e Vítor eram os nomes deles. Maria Clara quem os denominou.
Bia e Vítor foram, na gaiola, amadurecendo aos poucos. Passaram-se um mês, dois, três... Alguns meses. Bia já não mais estava resistindo as “cantadas” de Vítor e enamorou-se dele profundamente. Era comum encontrá-los dividindo carícias, namoricos e tudo o mais em matéria de galanteios. Como seria inevitável, Bia engravidou e começou a por ovos. Um, dois, três, quatro... Sete ovos.
Passaram-se mais alguns meses e eis que sete filhotes já reclamavam por comida. Vítor, todo orgulhoso da prole bonita, não media esforços para ajudar a companheira na difícil tarefa de todos os dias alimentar a descendência. Surgiram filhotes verdes, brancos, azuis, amarelos, brancos com preto e por aí. Lindos. Era interessante ver a dedicação do casal para com os filhos. Quando não tinha comida na gaiola, eles simplesmente botavam a boca no trombone em gritos histéricos e loucos. Os filhos reclamando por alimento e eles, em dialeto de pássaros, exigindo que o dono providenciasse logo o alimento dos pequenos. Muitas vezes, vendo eu o desespero dos pais, esquecia até de mim, para logo cuidar de abastecer a gaiola de provimentos. Algumas vezes Vítor só faltava pular em cima de minha mão, quando eu introduzia o alimento na gaiola. Depois de abastecida, ficava eu a observar o comportamento deles. Assim que a comida era fornecida, Vítor dava alguns chamados e logo Bia saía do ninho para o ajudar a armazenar a comida que seria regurgitada na garganta dos miudinhos.
Numa pressa interessante, os dois fincavam a cabeça no pequeno cocho sempre com o cuidado de ver se não existia nenhuma ameaça aos filhotes. Primeiro ia Vítor regurgitar o alimento; depois, era a vez de Bia. Iam e vinham, vinham e iam, numa seqüência ininterrupta até que os pequenos paravam de reclamar e se satisfaziam. Bia, então, saía da casinha e sentava no poleiro, junto do marido, reclamando dele a ausência de carinho. Ele, por sua vez, para fazer a média, dava-lhe alguns beijos e a alimentava, como se ela fosse um filhote. Depois disso, saía ela toda feliz para junto dos pequenos. Dentro do cumbuco ficaria horas e horas, protegendo os filhos da frieza e cobrindo-os com o manto de suas asas. Vez por outra, com a ajuda do marido, fazia uma faxina geral na casa. Na maioria das vezes, enquanto ela cuidava dos filhotes, Vítor ficava só, inventando de fazer alguma coisa para não ser consumido pelo tédio e pela ociosidade. Futucava a parede, tomava um banho, batia freneticamente as asas em exercícios, comia mais um pouco, cantava feliz com o destino que lhe fora reservado por Deus. Durante muitos dias essa foi a rotina do casal Bia e Vítor.
Os filhos começaram a crescer, ganhar ares adolescentes, engrossar o canto. Olhavam de soslaio pela abertura do cumbuco e recolhiam-se ao interior quando alguém se aproximava. Se um gato passava perto, lá estava Bia para fazer um barulho terrível, alertando da iminência de perigo. Os garotos e garotas iam crescendo, crescendo, ficando bonitos.
— Aquele é a minha cara! — dizia Vítor em linguajar de pássaros para Bia.
— Mas é convencido! Parece sim, comigo! E caiam numa cantoria combinada com vôos e acrobacias. A felicidade reinava naquela gaiola. Dos sete nascidos, quatro já viviam implicando com os pais dizendo que não mais queriam ser alimentados pelos genitores. Eles mesmos queriam se alimentar sozinhos, afinal, já eram quase adultos. Espírito de independência juvenil. Vítor olhava tudo com desconfiança, buscando uma maneira de aceitar o novo comportamento dos filhos. Bia era mais paciente, limitava-se a sentar no poleiro e observar a evolução do crescimento da filharada.
Um “belo” dia, terminando eu de abastecer a gaiola deles, resolvi dar um pulo no mercado para comprar alguma coisa. Deixei-os cantando e fazendo o maior alarido dentro da gaiola. Levei nisso apenas uns cinco minutos. Quando voltei e dirigi-me ao quintal, onde ficava a gaiola, eis que vi um espetáculo aterrador: a gaiola despencara do alto, não sei como. Um acidente, grave acidente, terrível acidente. No chão, apenas aquilo que restou da família alegre de Bia e Vítor. Sangue aspergido sobre o quintal. Vítor, talvez num assomo de desespero, voou para terras longínquas. Nunca mais voltou. Bia, presa sob a grade de ferro da gaiola e com uma asa ferida, nada podia fazer para salvar da morte o primogênito, que agonizava de dor. O branquinho com pintas pretas também acompanhou o pai no vôo ao desconhecido. Uns se debatiam, outros tentavam desesperadamente alçar vôo para longe daquela gaiola assassina. O mais novinho, junto do irmão que agonizava, tentava entender o que era aquele líquido vermelho que saía do rosto do irmão. Mas, o pobrezinho nada podia explicar-lhe, porque já estava morto.
Com paciência, saí recolhendo um por um, numa tristeza lacônica. Coloquei-os todos dentro da gaiola outra vez. Eles se olhavam estranhamente, tristemente, perplexamente... Nenhum ousou emitir piado. A alegria de minutos atrás se esvaiu. Olhavam-se e não tinham “palavras” para consolar uns aos outros. Estavam sobremaneira sentidos pela tragédia.
Do outro lado da rua ouve-se o canto de outros pássaros. Mas esses cânticos não contagiam mais aquela gaiola que fora o lar feliz de Vítor e Bia.
Nesse momento em que escrevo, Bia, sentada sozinha em seu poleiro, chama pelo marido. Mas ele não vem, ele não virá. Ele se foi... Para sempre.
Talvez, os poucos descendentes que restaram da família de Vítor e Bia possam no futuro gerar uma matriz que relembre o belo e encantador pássaro que foi Vítor: sempre galhofeiro, sempre brincalhão, sempre fiel à companheira. Que nunca mediu esforços para ajudá-la nos momentos mais difíceis. Vítor hoje está no paraíso dos pássaros, talvez cantando, ou talvez chorando por não ter tido a sorte de ver crescidos seus filhos tão belos e queridos.
Hoje, resta apenas uma “viúva” saudosa de um marido que a completou em tudo, que a protegeu em tudo, que nunca faltou com a responsabilidade de ser um pai. Vítor se foi, mas Bia continua, mesmo que sozinha, a ver nos sobreviventes, tangíveis traços daquele que lhe fora o maior marido do mundo.

Erisvaldo Vieira, 28 de agosto de 2004.

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A PRISÃO DE LUIZ DA SILVA
(Personagem principal do livro Angústia, de Graciliano Ramos).




Estava exausto psicologicamente o pobre Luis da Silva. Dentro de seu quarto, naquela eterna angústia, buscava maneiras mil de se desvencilhar dos problemas que comprara com a morte do seu inquisidor. A cadeia o espera, essa é a única realidade previsível. Não tinha para onde correr. Era cadeia na certa. Olhava os quatro cantos do quarto. Achava-os insuficientes. Os policiais apareceriam em breve; era só uma questão de segundos. Olhava para os lados e buscava uma forma de esconder a prova do crime, aquele maldito paletó sujo de lama. Se os policiais vissem aquele paletó, certamente estaria perdido. Olhou... olhou... olhou... nada encontrou! E a gora? O que fazer? Tinha matado um homem e precisava sair dessa de cabeça erguida; mas o infeliz do morto merecera aquela triste morte, se metera na vida de um cidadão honrado, que só tinha bons princípios, boas intenções. Quem mandou roubar a mulher dos outros? Mereceu aquele condenado, mereceu a morte, não se arrependia de tê-lo matado, merecera, disso tinha certeza. Mas o que fazer agora então? Nossa! Que mundo louco! Olhava mais uma vez para todos os cantos daquele minúsculo quarto, suava frio, queria esconder o paletó. “Bem que uns goles de uma boa cachaça aliviariam um pouco aquela triste sorte”. Desejara que o mundo se abrisse em uma enorme cratera e tragasse a todos. Meu Deus! Não podia desejar semelhante coisa. Que teriam as crianças de falta diante daquela triste situação a que se submetera, não fora ele mesmo que matara o homem mediante enforcamento? Podia castigar os homens por causa de sua loucura? Não! Certamente que não! Estava sendo egoísta, muito egoísta. E Marina? Marina era uma tratante, mulher da vida, sem procedência, aquela desavergonhada! Bastou o cretino do Julião Tavares aparecer com promessas e presentes e aquela bandida se deixou quedar por ele. Merecia morrer também. Maldita a hora que não percebera isso a tempo.
Mas o miserável senta na cama do seu quarto... olha pela centésima vez para os lados... nada! Nenhum lugar para se esconder, para esconder o paletó, o paletó certamente o denunciaria. Tinha quase certeza que se os policiais chegassem, aquele paletó o denunciaria. Entedia-se, desespera-se, reclama aos céus o livramento, mas o céu o abandonou. Pega duma tesoura, começa o processo de fatiamento do paletó... pensa no céu, em Deus, nos anjos. Quem disse que existia céu? Ora, alguém já foi lá? Já viu? Trouxe provas? Apareça um que me traga essas provas e eu acredito! Inferno deveria existir sim, pois o Julião Tavares já devia estar lá... Naquele momento de êxtase e delírio Luiz percebe que dois grandes olhos o observa, tenta livrar-se deles, em vão, movimenta-se pelo quarto em busca de livrar-se daqueles dois grandes olhos, nada. Os olhos acompanham-lhe os movimentos. Parecem sondar-lhe o espírito, parecem dizer palavras ocultas, zombar dele, caçoar de sua loucura, rir de sua desdita. Um grande quadro pintado a óleo faz questão de observar-lhe os costumes, os modos e as formas de comportamento.
Será que quem mata pode um dia chegar ao céu? O reverendo disse que não, impossível tal tarefa. O que fazer, então!? Ser bonzinho ou “pintar o sete”? A alma do errante, então, se destina ao erro e ao desvio; que fazer então? É o errado certo?
Luiz deita involuntariamente naquela cama de palha; apesar do desconforto, e sentindo o cansaço grandioso do esforço de manter-se consciente, cai morto de sono, prostrado. Esquece por alguns minutos que existem guardas que o procuram, que o buscam, que o querem de qualquer maneira. Cai num sono profundo, tendo-se certificado de enfiar os restos do paletó num pote de barro. “Vão se danar”! – resmunga segundos antes de entrar em pesado sono.
- Acorda, deixa de moleza - diz o guarda - já tá na hora de lavar o chão. Vamos, levanta, cambada de preguiçosos!
- Luiz tinha dormido pesadamente no dia em que matou o Julião Tavares. O cansaço, combinado com umas boas doses de cachaça que tomara,  fizeram-no presa fácil. Seu sono era tanto que foi levado para a cadeia como que anestesiado ainda naquela noite. Acordava agora com os gritos de um policial chamando os presos para o trabalho.
- Quer dizer então que você matou aquele folgadão, hein!? Posso saber por quê?
- Ora, o que você tem a ver com isso? – reclama Luiz meio chateado com a importuna pergunta de um dos companheiros de cela, o Rubens.
- Calma meu senhor, é que eu odiava aquele cheio de banhas. O safado costumava deflorar as mocinhas ingênuas, inclusive tive uma irmã que ele se meteu a besta um tempo desses e eu meti-lhe a mão. Resultado: acabei vindo parar aqui.
- Só por isso? – quer saber Luiz.
- Ora, ele é influente na cidade, apesar de todos saberem de sua safadeza e de como é corrupto.
- Política! Parece novidade político corrupto!
- E pelo que todos sabem aqui, você o matou. Bravo!
- Não vejo alegria na morte! – dizendo isso acende uma beata de cigarro.
- Ora, a morte de bandidos deve ser sempre celebrada, e aqui dentro você goza de privilégios.
- Privilégios!? Por quê?
Ora, aqui dentro só não tem valor estupradores e frescos. Esses o pessoal desce a vara, desce a madeira, mas um cidadão que mata um ladrão e impostor, político sujo, todos passam a respeitá-lo muito.
- Quer dizer então que ninguém vai mexer comigo?
- De jeito nenhum, homem!
- Vocês dois aí! – chega o guarda com cara de muito poucos amigos – parem de conversar se não meto os dois na solitária. É bacalhau com sabão uma semana.
Aquele dia passou, foi longo, muito longo. Sentado na pequena cela, Luiz olha uma estrela por uma fresta no telhado, ela é imensamente azul... começa a passar-lhe pela cabeça um filme. Lembra de ? O que será que fizeram dela? Coitada! Em que quintal estaria ela agora enterrando seus níqueis? Com certeza fora tentar viver a vida em outra casa... está ainda devaneando quando ouve um barulho meio surdo, pouco audível, apesar do silêncio que se fazia na cela. Põe-se em alerta. De sentado passa a deitar-se. Coloca o ouvido no chão para tentar ouvir passos. Nada! De repente, como que saído das trevas daquela cela fétida e úmida sente algo frio atravessando-lhe vagarosamente o pescoço, parece pequenas pernas molhadas, ameaça entrar-lhe pela camisa. O homem quer gritar, mas não pode, levaria um safanão dos outros que estão dormindo. A coisa continua a deslizar pelo pescoço chegando-lhe próximo às maçãs do rosto, região da orelha. Gira o pescoço tentando ver o que é. Dois grandes olhos o observam bem de pertinho, fuça-lhe a cara, espeta pequenos cabelos na região dos ouvidos, tem vontade de gritar, berrar, tirar aquela maldita maldição de cima de si. O que dirão os outros ao acordar? Não, não podia gritar, não podia gritar de jeito nenhum. Bruscamente, com um esforço incomum, levanta rapidamente deixando a coisa cair de cima dele. Era um ratão enorme, daqueles ratões de esgoto, exalava um cheio horrível de esgoto. O pobre Luiz lembrou de sua cama, lembrou do litro de cachaça, lembrou de ? O que seria dela? Que fim levara a pobre? E Marina, aquela desavergonhada, onde será que estava? Desejou estar no quintal... deitado, naquela rede, fingindo uma leitura qualquer só para ver Marina em trajes primários a jardinar, hortar, cuidar das plantações. “Mulheres são os bichos mais esquisitos do mundo”. Eu daria tudo àquela condenada, tudo, somente para tê-la como marido... fiz esforço enorme para comprar-lhe aliança... miserável, bastou chegar aquele balofa e ela se foi, deixando-me na sabatina. Olhos para os lados. A escuridão era tremenda. Ao longe ouvia o cantar dos grilos e o coaxar cadenciado dos sapos. Queria ser um sapo naquele instante, queria ser uma árvore, um pássaro, queria ser livre, enfim. Será que havia vida após a morte? Seria castigado por Deus? Ora, Deus ia lá se preocupar com um miserável que nem ele? Mas não ia mesmo! Como pode um ser humano viver numa infâmia de vida como ele estava vivendo e depois, ainda ir padecer no fogo do inferno eternamente? Ora! O padre foi lá para saber do fogo? Como pode um fogo queimar eternamente e como pode uma pessoa resistir para sempre as queimaduras? Ora, o Papa não sabia disso, ninguém sabia, só Deus sabia dessa história, nem os Bíblias sabiam dessa história. E ‘o melhor dos mundos possíveis do Voltaire’?  Ora, não existe melhor dos mundos possíveis. Deus criou-nos para sofrer, viemos ao mundo apenas para o sofrimento. Não é a vida  no mundo uma sucessão de sofrimentos? Se nascemos, pagamos. Se vivemos, pagamos. Se morremos, pagamos. Se somos traídos, matamos. Se trabalhamos, somos enganados; na bodega, roubados no peso. Na cadeia, humilhados. Quando em vida nos preocupamos com as doenças, com o preço do pão, do arroz, do feijão. Se temos filhos, morremos antecipados, porque deixamos de fazer a nossa vontade e passamos a fazer a dos filhos, acreditando assim no doce engano de uma vida perdida, renunciada. Não é bom venha o diabo e leve tudo?  O governo não prende os ladrões da política, estão por aí, todos soltos. Por que O Balofa do Julião deflorava, mentia, roubava, se metia na vida dos outros e andava por aí solto, se divertindo dos outros? Por que o governo não o prendia, ora! Foi preciso um homem como ele fazer o serviço? Bem feito, o infeliz já estava no fogo do inferno. Inferno era pra o Julião Tavares, aquele desavergonhado. Toda a história da humanidade se concentra na luta de classes, num contínuo jogo de interesses, onde os ricos atropelam os pobres. Um dia existirá, eu sei que existirá, um dia em que a classe pobre tomará o poder. Aí eu quero ver aparecer Julião Tavares cara de balofa pra roubar, assassinar o direito legítimo do ser humano de ter uma vida digna. O Brasil é o país do futuro, dizem alguns! Que futuro? Com esse bando de usurpadores infestando as prefeituras, sanguessugas, carrapatos do estado? Tenho certeza que quando aparece um homem justo e honesto numa prefeitura, que são espécies quase em extinção, eu sei que “há quem ache tudo ruim, e ria constrangidamente, e escreva cartas anônimas, e adoeça, e se morda por não ver a infalível maroteirazinha, a abençoada canalhice, preciosa para quem a pratica, mais preciosa ainda para os que dela se servem como assunto invariável: há quem não compreenda que um ato administrativo seja isento de lucro." (Graciliano Ramos) Ora, já é hora de dormir, reflete. Nesse momento um raio de sol entra na cela através da fresta no telhado, revelando o nascer de mais um dia. Corpos preguiçosos e sonolentos fazem movimentos de contorcionismo, disputando um pedaço de pano fedido que lhes serve de lençol. Subitamente, um balde d’água atravessa os ferros da cela, o cubículo em que dormiam fica inundado. Os miseráveis levantam de um salto, sendo saudados com enormes gargalhadas de sarcasmo de meia dúzia de macacos fardados. Homens da polícia, autoridades máximas. Bom não descuidar, tomar cuidado, os homens de vez em quando descem a madeira por quase nada, ganham pouco, miseravelmente pouco. Luiz da Silva foi o último a levantar, passara a noite em claro, sentia uma moleza tremenda. Estava com uma aparência horrível. A barba crescera em excesso. Os cabelos, antes bem penteados com vaselinas, agora fediam a uma seborréia; apareciam-lhe os primeiros sinais de convalescença. Andava trôpego, meio bambo. “Andem, desgraçados”, bradava um guarda grandão e com cara de poucos amigos. “Vão comer logo aquela miséria de comida porque hoje vocês vão construir uma estrada ligando Palmeira a Bom Conselho, excitante, não!? – dizendo isso disparou mais uma gargalhada de deboche.
- Filho de uma égua! Ah se eu te pegasse sozinho!? Comeria as tripas desse desgraçado assadas na brasa com uma dose de cachaça. Filho da mãe, um dia tu me paga. – Fala o negão, outro companheiro de cela do Luiz e que tinha fama de trucidador, por sua força e robustez. Diziam ter ele matado um homem branco porque o tal homem branco matara-lhe o irmão. Degolara-o em plena praça pública. O Negão era um touro.
- O que você disse? – dirige-se o guarda gigante ao Negão, tem nas mãos um cacetete. “O que foi mesmo que o crioulo disse à autoridade”?
- Eu te chamei ‘filho de uma égua’ – diz o Negão olhando bem dentro da fuça do guarda gigante. Espanto geral. Todos se afastam, prenúncio de briga. Outros guardas se aproximam. Mas são afastados pelo próprio guarda gigante. “Deixa comigo que vou ensinar uma liçãozinha a essa coisa feia e preta”. O guarda se pega ferozmente com o Negão. Uma luta renhida se faz sentir naquela hora, gritos, explosões de vivas, salvas, e toda uma gama de gritos de apoio. O guarda acerta um murro certeiro nas ventas do negão e o mundo se cobre de sangue. Negão simplesmente passa as costas da mão no nariz e, vendo sua mão vermelha de sangue, lambe-a como que evocando forças dos deuses, afoguea-se, aperreia-se sobremaneira e parte para cima do guarda como um furacão. Está a enforcar o guarda quando se ouve um estampido de arma de fogo ecoar naquele recinto. Um corpo estendido, uma alma gemendo, uma dor imensa... das costas jorram rios de um liqüido espesso, vermelho, chamado sangue. Um último suspiro, uma última palavra, ‘miseráveis’ e o espírito de Negão já viajou para a África. Tinha umas contas a acertar na pequena aldeia tribal em que o avô nascera e fora tomado à base de chicotadas e laço, para trabalhar nas terras americanas do Brasil. Morrera um valente, baleado covardemente pelas costas.
- Bem aventurado os pobres, porque eles verão a Deus! Bem aventurados os pacificadores, porque eles serão chamados filhos de Deus! Bem aventu...
- Cale a boca filho de uma cadela, se não te encho de chumbo. – Manda outro guarda se aproximando do Profeta. Profeta era um lunático que depois de cometer um adultério com uma de menor, agora vivia a ler a Bíblia e pregar o fim dos tempos.
- O homem pode calar a carne, mas jamais poderá calar o espírito, porque Deus veio ao mundo para salvar todos aqueles que... “leva uma tremenda cacetada na cabeça que o faz desmaiar.
Desgraçados! Desgraçados! – Desespera-se Luiz sendo repreendido por Rubens.
- Quer morrer também homem de Deus!? Fique calado! Calado!
Nesse dia, como o clima ficou muito tenso, vários presos, demonstrando princípios de sublevação, foram colocados em solitárias. E o chicote comeu naquela noite.
São quase onze horas da noite agora. Luiz e Rubens conversam em sussurros:
- Desgraçados, amaldiçoados. Tiro pelas costas. Covardes! – reclama Rubens.
- E o pior é que não vai acontecer nada com eles. Inventarão que o Negão se meteu numa briga com outros presos e foi morto. Tudo ficará por isso mesmo, como sempre fica.
- O problema está nesse “como sempre fica” que todo mundo pensa. – Reclama Rubens.
- E você acha que o pobre pode com o rico? Nesse mundo se vale pelo que tem, filho de Deus, e a riqueza sempre se sobrepujou à pobreza, tá na história, quem pode mudar a história?
O povo! – Responde Rubens enfaticamente.
Que povo que nada, o povo é uma força cega, e além do mais, o po...
Você disse exatamente o correto, “força”, o povo é “força”, o que faltam são pessoas que os guiem para as mudanças. Isso é o que falta. As pessoas são facilmente manipuladas pelas classes poderosas porque não têm conhecimento, não têm escola, não freqüentam faculdades. A desgraceira do mundo está nisso, um bando de pestes que não votam por princípios e sim por favores. A ética na política do Brasil é uma utopia.
- Onde você aprendeu tanta coisa, Rubens, fala bonito!?
- Ora, eu estou aqui por ter idéias meio diferentes das idéias correntes, acredito na força do pobre contra o rico.  Apesar do mundo ser capitalista, ouço falar que novos ventos sopram na Rússia, ventos de políticas novas, formas de governo novas.
- És comunista, Rubens!?
Não, mas assim que sair daqui, vou virar comunista. E parece que já tenho um amigo comunista também, não?
- Quem?
Tu, ora essa! Você tem idéias comunistas na cabeça. Apesar de ser discreto.
Nesse momento o Profeta entra no assunto.
- O Comunismo é o regime do mal, os homens comunistas não acreditam em Deus e fazem sofrer os cristãos, o comunismo é um crime contra Deus.
- Ora, lá vem você com suas histórias... por acaso você sabe o que é comunista? Foi um comunista que botou aqui?
- Claro que sei... é o regime dos demônios. – Benze-se ao dizer isso.
- Mas a cacetada que você levou hoje não foi dada por um comunista, foi!?
- Disse Jesus, perdoa-lhes, pois eles não sabem o que fazem.
Ah, meu Deus, que criatura! Aborrece-se Rubens com as observações do profeta. Luiz ouve tudo em silêncio. Lembra da aurora de sua vida, sua infância querida que os anos não trazem mais, que sonhos, que flores, que vida... e que cascudos também! O realismo invade o pensamento romântico na proporção em que ele, quando criança, ousara dizer a mãe que o inferno era conversa, que nunca ninguém tinha ido lá para saber, portanto era coisa inventada. Cascudos sonoros recebeu pela persistência em negar o inegável ‘quem já se viu negar o inferno’?

Mas  Marina caíra de cama muito debilitada. Após o funeral de Julião Tavares e conseqüentemente o enterro, a mulher teve inúmeros espasmos e convulsões nervosas. Uma tragédia se debatera sobre sua vida; não desfilaria mais pelas ruas com ar de dama da corte, os vestidos novos cessariam, teria que se contentar com os atuais, conservá-los, mantê-los novos, usá-los somente o necessário. Uma tragédia... o sonho fora por terra, os perfumes cessariam, os pós cessariam, os presentes cessariam... toda a vida opulenta que pensava levar, todo o dinheiro que esperava tirar do defunto, tufo foi por terra. Teria que se acostumar novamente em tomar banho naquele cubículo mórbido e frio e lodoso, apanhando água de cacimba e tomando banho de caneca, no susto. Teria que viver de lavar as roupas no quintal de terra batida eternamente úmido de sua casa. Molhar a barriga naquele triste tanque escuro esverdeado de lodo, envelheceria assim, sozinha, sua pele se encheria de rugas, os peitos cairiam, as pernas ficariam flácidas... quem quereria levar um relacionamento a sério com uma perdida? Quem gostaria de viver relacionamento sério com uma mulher volúvel, que trocara o pobre Luiz da Silva, na véspera do casamento, para ficar com o rico Julião Tavares? Quem a respeitaria por essa atitude? Estava condenada sim, estava desgraçadamente condenada a virar mulher de programa, esse seria o seu futuro, não tinha para onde correr. “Homens não gostam de mulher fuleira, perdida”, refletia. Já percebera no trajeto de volta do enterro, que algumas raparigas, postadas nas janelas das casas, a observavam com desdém. Estava decididamente desgraçada. Odiava o famigerado Luiz, odiava aquele infeliz que lhe roubara a felicidade. De repente pára, sente-se confusa, os pensamentos entram numa desordem completa. “Amaldiçoado, mil vezes amaldiçoado sejas tu Luiz da desgraça. Odeio você, infeliz”, reflete.
Chegando a casa, entra naquilo que lhe parece um quarto, observa a sua volta seus míseros pertences, com exceção de algumas peças de roupas e alguns pendentes presenteados por Julião Tavares. Tudo ali cheira a miséria. O piso, frio e com aparência de molhado; as paredes, sujas e riscadas de lápis de cor. Alguns pôsteres em preto e branco enfeitam pedaços das paredes. A cama, coberta com um colchão  feito à base de capim, revelava pobreza extrema. Uma penteadeira, velha e de madeira roída de cupins, com um espelho rachado, era a única mobília existente naquele quarto. Pode parecer trágico o que é para ser comum. Todos naquele bairro eram de pequenas posses, tinham empregos humildes e viviam para trabalhar. Os meios não justificam os fins. O que Marina quis fazer deixando o casamento com Luiz e voltando-se para Julião Tavares foi lucrar. O lucro fácil, a vida opulenta, os belos vestidos, os pendentes caros...Marina queria mostrar às pessoas daquele bairro que era melhor que as filhas dos outros. Ostentação pura. Agora o sonho acabou, Julião Tavares, aquele desvirginador calculista estava morto. O diabo o levou com todas as pompas cabíveis a um capitalista ladrão e safado. Foi explorar os vermes no seio da terra.
Mas amanhecera um dia bonito. Logo de manhãzinha ouvia-se nitidamente o cantar alegre e encantador dos pássaros. O grito do leiteiro, as vergastadas dadas pelos carroceiros nas miseráveis das burras e sopapos nos cavalos de carga na XV de novembro, rua importante na cidade. O mundo parece exalar vida por todos os cantos. O sol também acorda e, com ele, acordam os desgraçados inquilinos do pavilhão 1892, ao som estridente de gritos aterradores do guarda gigante. Tudo virara rotina. Teriam que trabalhar pesado naquele dia, dariam continuidade a  uma estrada com destino a Bom Conselho, estado de Pernambuco. Durante o trajeto, Luiz da Silva punha-se a observar com maior atenção para o guarda gigante. Acredita que aquele homem é expugnável e mereceria também ter o mesmo fim de Julião Tavares. De repente pára, põe as idéias novamente no lugar, se desgoverna, acredita estar com idéias suicidas. Quando sairia daquela situação? Quantos anos ainda teria de agüentar aquela masmorra? Cinco, dez, quinze, vinte? O carro cai num buraco, o solavanco tira-lhe a concentração e presenteia-lhe com um belo galo na cabeça.
- Desçam do carro seus miseráveis! Ajudem a desatolar essa peste de carro, vamos!? Bando de imprestáveis!
- Desatolado o carro, Rubens se aproxima de Luiz da Silva sussurrando-lhe aos ouvidos:
- Estão com um plano de fuga na cadeia.
- Quê!?
- Fuga!
- Fuga!?
- Sim, homem, fuga! Você não topa?
- Sei não! Parece arriscado! E como diabos vão fazer isso? Flutuar pelo telhado?
- Estão cavando túnel, o túnel dá lá pras bandas do mato do hospital, de lá nós pegamos o caminho para Maceió pela madrugada, com sorte, encontramos alguns pinguços com cavalos, roubamos-lhe os cavalos e adiantamos caminho, ninguém mais nos encontra.
- Parece loucura! Que liberdade podemos ter vivendo em fuga?
- E que liberdade teremos aqui nesse inferno? Alguns estão morrendo vitimados pela febre. Se não sairmos daqui, logo logo seremos os próximos.
- Sei não, preciso pensar! E o teu sonho de revolução? Se te pegam, adeus revolução, acho que deverias esperar um pouco mais de tempo, afinal, só tens apenas uns cinco anos para pagar na cadeia.
- Se eu passar mais um ano anos preso, enlouqueço; não sou homem para agüentar isso! Viver que nem passarinho numa gaiola. Não tenho mais nada a perder mesmo. Não tenho pai, nem mãe, nem ninguém. Casado nunca fui. Do que eu poderia ter medo? Se me pegarem, morrerei convicto que fiz algo para conquistar a liberdade, e isso me fortalecerá.
Naquela mesma noite cinco presos conseguiram escapar do inferno daquela prisão. Descoberto o plano, muitos sofreram castigos terríveis. Os guardas queriam que eles desses nos dentes, revelassem o paradeiro dos fugitivos. De nada sabendo, restaram apenas  muitos traumatismos e algumas poucas unhas arrancadas.
Amanhecera um domingo sombrio. A prisão exalava um mau cheiro desgraçado. No chão da cela fétida, vê-se escarros amarelos e algumas pontas de cigarro. Os inquilinos pareciam cadáveres, múmias saídas do país das sombras. Cabelos em desalinho, unhas imundas, dentes por escovar, roupas maltrapilhas e sujas. Alguns emitem sons guturais, feito bichos. Outros preferem monólogos. Andam como bichos, falam como bichos, sentem-se bichos, não querendo desmerecer os bichos... o tempo de prisão amacia alguns, a outros enfurece. Existem também aqueles que devaneiam, sonham sonhos impossíveis, entre eles está o pobre Luiz da Silva. Metido em mangas de camisa suja, o homem medita sentado naquela imunda cela. Olha o infinito sem enxergar um centímetro. Pensa em Marina, Julião Tavares, pensa na bodega do judeu na qual gostava de tomar umas bicadas de cachaça e meditar sobre a sorte dos homens; lembra daquele canto que costumava ficar perto da porta, escondido que nem bicho acuado. Lembra das ruas movimentadas da cidade. Das caras importantes, das caras medíocres. Pensa na corda que enforcara Julião Tavares. A dificuldade que teve ao suspender o desgraçado homem na árvore e enforcá-lo. ‘Daria tudo por uma boa dose de cachaça’, refletia. Que estaria fazendo ? e sua esquizofrenia em esconder moedas em baixo da terra? Estaria ainda viva? Pirara? Estaria passando fome? Sentia-se o mais miserável dos homens, um covarde, sim um grande covarde. O Rubens estava agora em liberdade e ele ali, enclausurado. Sentia-se um verme, um maldito verme, um Julião Tavares, pior do que Julião Tavares. Quis levantar, sacudir aquela grade que o separava da parte externa de cela, quis bradar e mandar o soldado gigante para o diabo que o carregue. Precisava ser homem, afinal foi homem quando naquela noite fria seguira o Julião Tavares e dera fim à vida daquele miserável, precisava ser homem agora de novo. Por que não fugira, por quê? De repente levanta de um só impulso e ameaça aproximar-se da cela e sacudi-la bastante, sendo veementemente impedido por boa meia-dúzia de companheiros de cela.
- Tá louco? Quer morrer, infeliz!? Ainda não aprendeu como a coisa aqui funciona? – toma a palavra o Índio.
- Preciso dizer umas verdades aquele mise...
- Cale-se idiota. – Grita novamente o Índio.
- O que está acontecendo aí dentro? – quer saber o guarda grandão.
- Nada não seu guarda, é nosso amigo que queria apostar quem agüentava mais noites de sono e se deu mal, caiu de cansaço.
Vendo que o guarda se aproximava perigosamente da cela, e percebendo o descontrole de Luiz da Silva, Índio, em frações de segundos, dera um golpe certeiro em Luís deixando-lhe desacordado.
- Sendo assim, joguem esse traste na cama. – Ordena o guarda gigante olhando-o de soslaio. Fizeram. Duas horas depois chega a prisão um homem de terno alinhado e novo. Aparenta ter uns 45 anos de idade. De porte altivo, olhos compenetrados, fala decidida, revela segurança em seus movimentos e determinação em seus gestos.
- Sou Joseph White, advogado de Luiz da Silva e gostaria de ver o meu cliente. Minutos depois está diante de Luiz da Silva.
- Quem o mandou aqui, olha, eu não tenho dinheiro e...
- Calma Luiz, foi o judeu quem me contratou, e ele me contou tudo que aconteceu a você. Sei em detalhes tudo que se passou com você e como aquela moça que o traiu. Estou juntando argumentação suficiente para tirá-lo dessa prisão.
Luiz baixa a cabeça sobre a mesa e começa a chorar...
- Vamos rapaz, levante a cabeça, não fique assim... olha aqui! Consegui um Habeas Corpus para você, vão ter de te soltar provisoriamente e poderás visitar tua casa enquanto monto todas as peças do quebra cabeça do processo. Vou te livrar da cadeia rapaz. Não tenha dúvida nenhuma.
- Não sei como agradecer, senhor, como é mesmo o seu nome?
- Joseph White, nascido na Inglaterra e radicado no Brasil há vários anos.
- E quanto vai custar ao pobre do meu amigo judeu esse...
- Nada!
- Nada!?
- Sim, digamos que é um favor que eu devo ao judeu, e você não tem do que se preocupar com dinheiro.
- Louvado seja Deus! Agora penso que ele existe!
O ânimo cresce de forma flamejante no espírito do pobre Luiz da Silva. Um brilho diferente surge nos olhos do pobre homem, faíscas de vida ressurgem naquela alma já quase descarregada de esperanças. Um novo sol parecia outra vez brilhar.
Naquele mesmo dia Luiz da Silva pôde sair daquela prisão maldita. Andando pelas ruas da cidade, seu pensamento ainda se recusava a aceitar aquela idéia de liberdade. Era estranho ter passado quase um ano e, de repente, ser assim liberto.
Fazia uma tarde bonita de verão quando Luiz se dirigia àquilo que foi sua ex-casa, andando pelas ruas da pequena cidade, de instante a instante observava as fisionomias... pareciam diferentes. Olhavam-no com caras de quem estão vendo um zumbi recém saído de um cemitério. Em parte tinham razão. Mas a alegria era tanta que já não se importava se o julgavam um vivo-morto. Queria mesmo agora era passar na praça do açude, ver aquela paisagem bonita, parar um pouco ali, meditar vendo o escurecer do mundo. Diriam estar ele louco, mas que importava? Sabia que não estava. Assim, Luiz parou na pequena ponte do açude e pôs-se a observar o vôo rasante das gaivotas, um rato grande passando debaixo da ponte rústica; não gostou dessa visão, lembrou do visitante incômodo da cela e passou-lhe alguns arrepios pela espinha. Sentiu medo, medo de retornar àquela prisão, aquela fedentina desgraçada. Com esforço, tirou essas idéias da cabeça, afinal estava livre e isso era o mais importante. Queria chegar a casa logo, rever o quintal, o lugar das moedas de ? , colocar a rede no quintal, abrir um Homero, Cícero ou Vítor Hugo e deliciar-se numa leitura de livro. Não, começaria por Graciliano Ramos, seu conterrâneo, procuraria ler “Angústia”, que já a crítica dizia ser o melhor livro do romancista nascido em Quebrangulo e que viera ser comerciante aqui em Palmeira dos Índios. Empolgara-se com a idéia. Afinal, ele, o Luiz, também nascera em Quebrangulo. Sentiu o coração premido quando lembrou da possibilidade da vigarista ainda morar na casa vizinha a sua. Não queria encontrá-la de jeito nenhum, preferiria voltar para a cadeia a encontrar com aquela impertinente e cretina. E se ela tivesse ainda morando vizinho? E se ele a visse, se ela tentasse dizer-lhe pilhérias? Agüentaria? Permaneceria calmo ao ver a imagem e semelhança do diabo na sua frente? Gelou, suou frio, azedou-lhe a idéia de voltar a casa. Mas não tinha jeito, tinha de ir lá. A casa era sua, morara lá durante quase 30 anos. Seus pais a construíram na época de vacas gordas, tinha direito sobre aquilo, sim senhor. Marina que fosse para o diabo que a carregue. Assim o fez, voltou. Entrando na sala, eis que uma mulher está a sua frente; de vestido, olhar compenetrado, cabelos soltos como que repartidos ao meio, nariz bem feito, vestido escuro que deixa ver o colo de alabastro... a pessoa está imóvel, procura-lhe os olhos. Treme de emoção o pobre Luiz, começa a transpirar, passa a mão nos olhos meio marejados, sente uma emoção indizível, lembra do quanto foi-lhe difícil àquela aquisição, mas finalmente agora ela estava ali e era toda dele, a monalisa.
Luiz era chagado às artes, apesar de ter nascido no Nordeste do Brasil, região historicamente descriminada. O quadro que estava na parede fora encomendado por ele há vários anos, e já não mais acreditava que ele chegasse. Chegou. Quem o colocou? Cadê ? Se aproxima do quadro, retira-o da parede. Um pequeno pedaço de papel cai. Coloca com cuidado o quadro no chão e põe-se a ler. Em poucas linhas descobre que ? não mais existe, fora morar com Deus na glória. Pobre ... só tinha um defeito: esconder dinheiro no fundo do quintal, enterrá-lo embaixo da terra, era a psicose da moribunda finada. Sentiria saudades. Contempla o quadro mais alguns minutos e enfia para o quintal. Quintal sombreado de pés de manga. Embaixo de um deles, armara rede, e o mundo da literatura descortinou-se para ele. Leu Homero, Voltaire, José de Alencar, Machado de Assis, Vitor Hugo, Cícero, Alexandre Dumas, Dostoievski, Tolstói, entre tantos e tantos outros. Uma sombra, uma rede, livros, muitos livros... por impulso, olha para o quintal ao lado, onde a infame costumava lavar a roupa e aguar as plantas, a porta da cozinha está fechada, ainda bem! Dirige-se agora para o montinho de terra que ? costumava depositar o dinheiro que recebia de salário dele. Pobre mulher! Tão dedicada a mim! Mete a mão na terra fofa e um pouco úmida, um pequeno rachão se abre e ele cai dentro de um buraco de cerca de meio metro de fundura. A tábua que recobria o imenso buraco era recoberta com espessa camada de terra, com a umidade, ficara fofa e cedera, deixando o Luiz cair dentro dela.
- Mas que diabos é isso? – diz surpreso.
Passado o susto, percebe que está em cima de uma pequena caixa de madeira depositada no fundo do buraco. Movido por imensa curiosidade leva a botija para dentro de casa, procura uma ferramenta para quebrar-lhe a fechadura. Quebra.
- Nossa mãe do céu, mas isso não é possível! Não é possível, Deus meu, o que é isso!?
Luiz da Silva é agora um homem rico. Dentro daquela caixa, chamada também de botija, tinha muitas pratas de ouro, dinheiro, e algumas pedras preciosas. Observou que o dinheiro era recente, apesar do ouro e as pedras preciosas serem antigos, uma vez que a aparência desses objetos aparentava muitos anos. No fundo, um bilhetinho endereçado ao próprio Luiz dizia que seria ele quem encontraria aquele acúmulo de muitos e muitos anos. Que ela não mais precisaria, que estaria com Deus nas alturas e que ele fizesse um bom proveito sobre a terra daquele dinheiro e valores.
Deus te abençoe! ... você foi uma pessoa de muito bom coração! Nesse momento ouve alguém que bate forte na porta da frente da casa. Volta a sentir arrepio, expectação, sente os cabelos se arrepiarem nos braços, sente medo, muito medo... a porta bate com mais força...
- Abra Luiz,  aqui é o seu advogado.
- Mais tranqüilo Luiz abre-lhe a porta. É o senhor doutor professor Joseph White.
- O que foi que você fez Luiz!? toda a polícia está te procurando como principal suspeito da morte de Julião Tavares. Fique calmo que eu vou te dizer o que você deverá fazer e dizer quando eles chegarem aqui para te levarem.
Luiz acordara do sono profundo que fora vitimado pelo excesso de pinga, tinha sonhado a noite inteira, e vendo as pancadas fortes na porta da frente fora abrir a porta já esperando o pior.
Olha, instrui o advogado, você deve a partir de agora seguir a tudo aquilo que eu te disser: primeiro...
O pobre Luiz cai desmaiado! Era tudo um sonho! A realidade tinha definitivamente chegado até ele. Enfrentaria uma verdadeira prisão.

Fim.


ESCLARECIMENTOS

Todo este pequeno relato pretende enaltecer a figura ímpar do homem Graciliano Ramos, a arte do mestre Graça, como muitos gostavam de chamá-lo. Para isso nos servimos de trechos de livros do escritor e de outros escritores; nos valemos de cenas e situações presentes em outros livros de Graciliano Ramos. Não é de nosso interesse desmistificar ou denegrir a nenhum personagem graciliânico ou agredir a quem quer que tenha sido citado no conteúdo acima. Tudo que foi criado acima é pura ficção. E tem como real objetivo exaltar a magnífica capacidade criadora de Graciliano Ramos no livro de sua autoria “Angústia”.
No referido livro, “Angústia, de Graciliano Ramos”, Julião Tavares apossa-se de Marina, a pretendida por Luiz da Silva. Desesperado e angustiado por ver-se ludibriado por Marina e Julião Tavares, Luiz da Silva arquiteta um plano de eliminá-lo. E Assim o faz. No retorno para casa não consegue dormir. Passa todo o tempo fechado dentro de um quarto esperando a vinda dos policiais. Nessa angústia fica... e o livro de Graciliano Ramos assim termina.
O objetivo desse humilde e simplório trabalho foi dar continuidade a história encerrada por Graciliano no livro Angústia, sem querer com isso nem se parecer com o magnífico escritor de Vidas Secas, São Bernardo e Caetés. Graciliano Ramos é simplesmente inimitável. O homem do estilo insondável e ainda digno de muitos e muitos estudos. A crítica ainda levará muito tempo para conseguir decifrar o “não-dito”, o implícito nas obras do escritor.

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Seu Maior Sonho – conto premiado pela CBJE

Enfim, o dia da formatura chegara. No salão de festas tudo estava iluminado. Mesas fartas, gente bonita transitando de um lado para o outro entre risos e abraços. Garçons em roupa de gala e mestres de cerimônia em suas tradicionais formalidades.
Eveline estava mais bela que nunca naquela roupa feita sob medida, só para ela, pelas mãos nobres de um estilista importante. Bela e radiante. Nem podia acreditar que aos vinte e três anos de idade já era jornalista.
Eveline era filha de um comerciante bem sucedido no ramo de hotelaria. Ela, realmente, em matéria de beleza, tinha todos aqueles atributos físicos desejados por muitas garotas de sua idade. Seus olhos verdes, seus cabelos loiros, sua pele clara, tudo contribuía para que ela fosse bem sucedida na vida. Em nada perdia para as apresentadoras de televisão. Tentaria ingressar no jornalismo de alguma revista, jornal ou TV. De preferência que fosse na TV, seu maior sonho. Como já dissemos, a beleza da moça era algo de estonteante, estava mais bonita, inclusive, do que Julianna, considerada a mais namoradeira da Universidade.  Nunca entendeu por que ela, Eveline, sendo muito mais atraente que a amiga Julianna, tinha tanta dificuldade de arrumar namoro. Seus relacionamentos eram rápidos e esporádicos.
— Oi, Eveline, como você está bonita, menina! Nossa! — Declara Julianna.
— Você também está um arraso, garota.
— Estão nos chamando lá no palco, vamos?
— Julianna, posso te pedir um favor?
— Diz, miga!
— Na hora da foto oficial não deixa a Maria da Glória ficar perto de mim, tá?
— Eveline, será que você nunca muda de opinião?
Maria da Glória era afro descendente, pretinha mesmo. De branco tinha apenas os olhos e os dentes. De todas as formandas de jornalismo, ela era a mais talentosa, a mais culta e terminara o curso com a nota máxima. Tinha apenas um defeito, segundo Eveline: ser preta. Glória sabia que Eveline era racista desde muito e até já discutira forte com ela, motivo pelo qual não se davam bem.
Maria da Glória viera de uma escola pública, como bolsista. Depois que o pai morreu, era ela quem cuidava da mãe e de outros dois irmãos menores. Dividia-se entre a Universidade pela manhã e o trabalho de atendente comercial à tarde e aulas de reforço três vezes por semana à noite. Uma batalhadora. Na Universidade gozava de muita simpatia junto aos professores, principalmente por sua inteligência e espírito de luta. Só a Eveline não gostava dela, não gostava dela porque Glória era... Preta. Para Eveline, ser de cor preta era sinônimo de sub-raça. Não entendia como a Glória, a pretinha Glória, conseguia notas tão elevadas. Talvez fosse porque era preta e pobre e assim, os professores a protegiam. “Ela que fique na fila de trás, longe de mim”, pensou Eveline dirigindo-se ao palco para a sessão de fotos.
— Não se preocupe, dona Eveline, não vou “escurecer” sua “claridade”! — Declara Glória percebendo o esforço de Eveline para distanciar-se dela.
— Mas é metida! É bom mesmo que fique distante! — E calou-se. Fosse em outro local, certamente as coisas não terminariam naquele silêncio de formalidades.
A festa terminou quase o sol nascendo.
Saindo do evento, exaustas, eis que o carro da família de Eveline, com motorista e tudo, chega para buscá-la. Algumas aproveitam a carona “gentilmente” oferecida pela branquinha de olhos verdes. Já no caminho:
— Eveline, aquela que vai lá não é a Glória? Vamos ar uma carona pra ela!
— Quem? Eu? Aquela negrinha chata? De jeito nenhum. Não quero sujar o carro. — Declara para a amiga Anabel.
Anabel não gostou do que ouviu, mas estava de carona, preferiu engolir tudo calada.
O tempo passou... um, dois, três... oito anos.
Eveline começou escrevendo para um jornal na coluna sobre política. Posteriormente foi promovida para o cargo de redatora auxiliar e conseguiu depois ocupar o cargo máximo naquela jornal, só perdia para o dono. Uma revista de circulação nacional, especializada em assuntos políticos, seria o seu próximo emprego. Nessa revista conseguiu comprar um pequeno apartamento e um carro novinho em folha. Nessa época, o pai falira e passara a depender da própria filha e de uns poucos imóveis de que ainda dispunha para sobreviver. Ela, naquele momento, era quem ajudava a família a não ir para a miséria.
A garota se destacava cada vez mais no jornalismo e era assediada por outras revistas de renome. Em três anos assinara contrato com duas importantes outras revistas, mas seu sonho mesmo era trabalhar no jornalismo de alguma emissora de televisão. Depois de mais alguns anos, finalmente, a oportunidade chegou. Uma emissora de porte a convidou para uma entrevista. Era a chance da sua vida. Nesse dia comprou roupa caríssima, gastou com cabeleireiro famoso, fez as unhas e tudo o que o dinheiro pode transformar numa mulher.
O grande dia chegou. Seu maior sonho estava batendo-lhe à porta.
A entrevista seria às oito horas. Ela chegou meia hora antes, como manda o bom costume.
Lá pelas oito e quinze foi introduzida na sala de um refinado senhor, especialista nesse tipo de processo seletivo. Sentiu-se um pouco nervosa, mas confiante que se sairia bem. “Não se saíra em tantas outras”?, raciocinava.
E não deu outra. Eveline se deu bem na entrevista. Mas, para sua decepção, aquela entrevista não era a definitiva. Haveria outra. Assim, dois dias depois, Eveline mais uma vez voltou à sede da emissora.
— Um momentinho, senhora Eveline, que vou ver se já podem atendê-la.
Cinco minutos depois, o gentleman retornou.
— Peço-lhe milhões de desculpas, senhora, mas a senhora não vai poder ser atendida hoje. A pessoa encarregada de entrevistá-la está muito ocupada com a redação do telejornal que vai ao ar hoje às oito. Pode ser na sexta-feira?
— Ora, mas claro! Entendo o que são obrigações. Não se preocupe, volto na sexta.
Eveline andou quase duas semanas sem conseguir ser atendida. Algo estava errado, certamente. Mas no décimo oitavo dia, já sem esperanças, finalmente seria entrevistada. De repente isso seria um teste de persistência para ela, quem sabe?. A empresa queria saber se realmente estava determinada. Mas agora era diferente. Seria finalmente atendida. Seu maior sonho de infância, trabalhar na TV, tornar-se-ia uma realidade.
— Pode ir, senhora Eveline, é na sala grande de vidros fumê no final do corredor.
Ajeitou a roupa, retocou discretamente o batom, balançou os cabelos...
— Toc! Toc! Toc!
— Pode entrar, a porta está aberta.
Calmamente Eveline roda o trinco e abre a porta. A pessoa lá do outro lado, sentada refesteladamente, cumprimenta-a em voz calma e tranqüila:
— Como vai, senhora Eveline de Castro!?
— Glória!?!? — desmaia.
Era a “negrinha” Glória a redatora chefe daquele telejornal. Respeitadíssima, inclusive a preferida do dono daquela empresa de televisão.
—Você, leitor (a) é a Glória. Eveline trabalha ou não na emissora?
(   ) sim...   (   ) não
Por quê?

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UMA JOVEM REBELDE


— Você se quiser que varra! Mas é nada, vou bem estragar minhas unhas! — declara Paula para a mãe em tom de deboche.
— Diachos, a gente bota filho no mundo e é isso que a gente recebe. Você tá pensando o que, hein, menina? Você só tem treze anos e pensa que é...
— Olha, quer saber de ma coisa... Você que fique aí conversando sozinha, eu vou pra casa da Fabiana.
E foi mesmo, deixando a mãe engolfada de suor. A varrer, a passar, a limpar, a espanar e a cozinhar. Pelo meio dia ela, a Paula, voltaria para almoçar, como sempre fazia em seus treze anos de idade.
Gertrudes, a mãe da Paula, era pau para toda obra. Dividia o tempo em arrumar a casa logo de manhazinha e logo em seguida ia trabalhar em casa de família onde ficava até as quatorze horas. Apesar disso, dessa árdua rotina, Gertrudes era estudada. Terminou o ensino Médio e fez o primeiro ano do curso de Letras, mas, um casamento às pressas a fez desistir da faculdade. Paula tinha nascido e não conseguiu conciliar faculdade com deveres de dona de casa. Durante tantos e tantos anos viveria apenas em função da filha. Paula precisava de um caderno novo e lá estava a mãe para comprá-lo. Paula precisava de uma sandalhinha nova e a mãe logo comprava. Paula reclamava de um celular novo e a mãe fazia das tripas coração e, lá estava Paula com um celular novo. A filha não tinha do que reclamar. O pai da menina, bem, o pai da menina ficou com ela até os três anos de idade, pois, encontrando outra mulher, não hesitou em deixar Gertrudes. Caberia a mãe criar e educar a filha. Apenas um plano de saúde ele concedeu à menina, mas isso durou apenas uns quatro anos. Desabou lá para as bandas do Mato Grosso e só era visto uma vez por ano, quando na oportunidade voltava para ver a mãe. Digo, a mãe dele. Não se interessava para ver a filha.
O tempo foi passando e Paula beirava os quinze anos. Rebelde, desobediente, vivendo os arroubos da juventude. A maior parte dos dias passava na casa das amigas. Quando voltava para casa era para comer e assistir à televisão. Apenas isso.  Até os estudos tinha abandonado. Não tinha quem a fizesse estudar. Em nada aceitava as lições de moral que a mãe, vez por outra, tentava colocar na cabeça dela. Sempre dizia: “Os tempos hoje são outros, mãe, a senhora faz parte da geração cafona”. Sempre numa atitude de senhora do seu próprio nariz. Isso com quinze anos de idade.
Paula, apesar da precoce idade, aparentava ter seus dezessete ou dezoito anos, de larga envergadura, já parecia uma moça feita. Crescera mais que o normal. Não era bonita, também não era feia. O corpo sim, era bonito, bem arrumado, “sarado”, como se diz na gíria adolescente. E tanto era que não faltavam meninões na casa dela. Todos interessados. Certo dia, Paula foi encontrada pela mãe, em casa, sozinha, com um garoto de nome Pedro. Esse rapaz não era bem quisto pela sociedade. Todos suspeitavam de que ele fumava maconha e já ajudara outros delinqüentes a roubar motos. A mãe se desesperou, mas tudo que conseguiu foi ser humilhada pela própria filha dentro de sua própria casa. Recebeu respostas mal educadas da própria filha, para gozo comedido do Pedro. Era demais!
— Gertrudes, cadê a Paula? — Pergunta dona Germana, uma vizinha.
—Deve tá correndo mundo como sempre.
Dona Germana calou-se, como quem queria entender e dizer alguma coisa.
— Acho que você quer falar alguma coisa, Germana. O que é?
— Nada não! É que, você sabe, eu nunca gostei de me meter na vida de ninguém, mas...
— Fala, mulher, pode falar... Qual é o problema?
—Tua filha!
— O que ela tem?
— Você sabe onde ela está agora?
— Já disse. Correndo mundo.
— Ela está na casa do Severino. — Enfatiza Dona Germana.
— E qual o problema?
— Mulher, o Severino é um homem que mora sozinho, é separado da mulher, e tua filha entra na casa dele oito da manhã e sai de lá pelo meio dia. Você acha isso normal?
— E ele é separado? E aquela mulher que vejo ele com ela de vez em quando?
— Ora, Gertrudes, abra o olho, aquela é uma das mulheres com quem ele anda. Não tem compromisso com ninguém.
— Nossa mãe, não sabia! Também, só vivo trabalhando... Vou chamá-la agora mesmo.
Já em casa:
— O que a senhora anda fazendo na casa do Severino?
— Ora, por que essa pergunta agora?
— Porque o Severino é um homem separado e que vive sozinho e não pega bem você, uma menina, viver socada na casa dele.
— Ora, mãe, mas que cafonice. Eu estava apenas jogando vídeo game com ele. Que tem isso de mais? Tem outras meninas que vão lá também.
— Eu não quero mais você lá, ouviu? Não quero.
— Ora, que besteira! Velha cafona! E saiu no modo mais natural do mundo em direção ao seu quarto. A mãe perdeu a paciência. Pegou-a pelo braço, jogou-a no sofá, tirou uma sandália. Paula apanhou pela primeira vez na vida. A mãe estava tão “louca” que não escolheu lugar para bater, deixando Paula com marcas por toda  parte.
Aproveitando que a mãe saiu, corpo ainda dolorido, chorando, deitou na cama e ligou direto para a amiga Fabiana.
— Alô, Fabiana?
— Que foi, amiga, você está chorando?
— Foi minha mãe. — E contou tudo.
— Nossa, Paula que mãe mais cruel. Se eu fosse você, aprontava uma com ela. Ficava sem comer, ficava sem falar com ela, passava uma semana saindo todo dia, sei lá!. Inventa alguma coisa. Essas mães de hoje acham que a gente somos umas bobonas. Eu mesmo até já fiquei com um homem casado e minha mãe nunca soube.
Passaram-se 7 anos. Paula estava com vinte e dois anos de idade e cada vez mais rebelde. Tão rebelde que vinha a casa apenas algumas poucas vezes, pois o restante, passava na casa de amigos e de amigas. Paula estava nem aí para mais nada. Não terminara os estudos, não queria trabalhar, não queria envolvimento sério com ninguém. Tornara-se uma maria-vai-com-as-outras da vida entre um barzinho e outro; entre um show e outro, entre um rapaz e outro. Foi nisso que se transformou sua vida: um carrossel de aventuras. Existia até quem dissesse que ela inclusive já abortara um filho. Tudo ficou na hipótese. Ninguém nunca provou nada quanto a isso.

Era Natal.

— Não vai visitar tua mãe, Paula?
— Aquela velha chata deve estar cheia de coisas para me dizer. Não vou.
Paula, tendo dito isso, saiu e sentou sozinha num banquinho da praça, como fazia de vez em quando. Os amigos de aventuras estranharam aquela atitude inesperada e foram até ela. Paula estava amarela, olhos fundos, ar de cansaço, aparência cadavérica.
— Gente, acho que não estou bem. Estou sentindo umas coisas estranhas, um calor, uma dor de cabeça de rachar. Nem bem terminou de dizer isso, e, dos cinco amigos, quatro deles disseram imediatamente ter que ir fazer alguma coisa. Ficou apenas Fabiana, sua velha “amiga”.
— Que é que tu tem, mulher? Ora, deixa de frescuras Paula. Só porque eu falei em tu visitar a tua mãe? Não quer falar nada, não? Tudo bem, já vou indo. Acho que você quer ficar sozinha. Paula estava tão mal que não conseguiu responder a amiga, pedi-lhe socorro, pois estava quase sem ar, arfando. A amiga, por sua vez, era insensível para entender que ela precisava de ajuda, o que entendeu foi que Paula estava com uma de suas crises de depressão e deixou-a sozinha, ali, naquela praça vazia de árvores e de sentimentos.
Quinze minutos depois, estava Paula no leito de um hospital. Fora salva por um senhor desconhecido. Moribunda. Sem ninguém. Sem documentos. Ninguém sabia sua origem. Sabia apenas que ela estava doente, muito doente. Depois de tomar um paliativo, Paula começou a pensar na vida que até então tinha levado. Pensou nos estudos que não fez. Pensou nos amigos que agora sabia não ter. Pensou na vidinha sem graça que até ali tinha levado. Pensou também na violência que foi tratada pelo Severino, quando a queria beijar à força e ela não aceitou. Pensou que poderia morrer a qualquer momento, longe de tudo e de todos. Estava ainda mergulhada em pensamentos quando lembrou da mãe. “Se ela estivesse aqui, certamente jogaria um monte de coisas na minha cara”! De repente, lembrou que a mãe tinha lhe deixado na penteadeira, dias atrás, uma pequena carta. “Onde está a carta”? Forçou um pouco a memória e lembrou que a tinha colocado no bolso da calça.
— Enfermeira, por favor, dá pra pegar uma carta no bolso da minha calça? — pediu esforçando-se para articular as palavras.
— Tudo bem.
Cinco minutos depois, estava Paula naquele leito de hospital, exalando o cheiro de éter do ambiente ambulatorial, entre gemidos de outros doentes e a agonia de outros que se despediam desse mundo. Abriu a carta pela primeira vez. Tinha sido a mãe que escrevera. A luz perene vinda da janela daquele ambiente e o seu estado de prostração contribuíram para que ela conseguisse pela primeira vez na vida, concentrar-se em uma leitura. Dizia assim a carta:

“Ana Paula. Quando você nasceu, com aqueles olhinhos brilhantes, senti-me como que tivesse renascido. Olhando para o seu rosto miudinho, senti no coração, que Deus estava me dando uma oportunidade de ser feliz, já que o teu pai me maltratava muito. Você era para mim a minha razão de viver. Pois somente a tua existência me motivava a prosseguir a vida. Não fosse você, certamente eu não mais teria razões de existência. Deixei os estudos por você, para cuidar de você. Trabalhei em casa de família e ainda trabalho, como você bem sabe, muitas vezes sendo humilhada, somente para que não te faltasse nada. Você foi crescendo, crescendo... Fiz de tudo para não te magoar. Fiz os teus gostos, tuas vontades. Muitas vezes deixei de vestir somente para comprar aquilo que você precisava. Sacrifiquei o resto de minha vida, longe do teu pai, longe de outros homens somente para ter tempo de me dedicar exclusivamente a você. Mas o trabalho intenso não me permitia isso. E acho que foi nisso que errei. Você não me entendeu. Nunca me entendeu. Pensando em te fazer o bem, acho que te fiz o mal em não te criar fazendo por merecer as coisas que te dava. Quero que saibas, minha filha, que independente de tudo, eu te amo muito. Sempre que você precisar de mim, estejas onde estiveres e fazendo o que estiveres fazendo, eu sempre estarei contigo. Tem sido difícil para mim aproximar-me de você ultimamente. Você não vive mais em casa, vem aqui uma vez ou outra. Você não reconhece mais a tua mãe, pois estou velha e acabada, sem forças. Mas isso não importa, o que importa é que no dia que você reconhecer que sou tua mãe, e que apenas desejo o teu bem, estarei aqui de braços abertos para você. Espero que isso aconteça. É o que tenho pedido a Deus durante muito tempo. Mas Deus tem desígnios estranhos de se entender. Ele deve saber o que faz...
Não esqueça: você mora em meu coração. E já te perdoei as agruras que me tens feito passar. Na hora que quiseres voltar, estarei aqui te esperando. Sempre”.

Tua mãe


Lágrimas quentes e salgadas deslizavam suavemente pelo rosto de Paula. Naquele momento,  entendeu que os amigos pode até serem bons, mas nada e nem ninguém poderia substituir o calor de uma mãe. Onde estavam os amigos? Que adiantou viver sempre em função deles? Na hora em que mais precisava, lá estavam eles, distantes. E nunca fez mal a eles, como fez tantas vezes à pobre mãe. Naquele instante, mergulhada em reflexões profundas, Paula sentiu um calor diferente. Não era calor de morte, era calor de vida. Recuperaria a amizade com a mãe, diria a ela coisas íntimas, pediria a ela conselhos, a ouviria sobre assuntos de mulher, não mais a trataria de forma brutal. Sim, faria isso. Procuraria estudar, arrumar um emprego, ajudar a pobre mãe a cuidar da casa. Será que teria essa chance? Será que escaparia daquela doença estranha que os médicos não quiseram dizer o que era? Paula estava suando frio, tendo alucinações, gemia, chamava pela mãe insistentemente... Depois de uma injeção, dormiu.
No outro dia, logo pela manhã, ainda dormindo, sentiu alguém lhe acariciando ternamente o rosto. Acordou.
— Mãe! Mãe! É você? Eu estava... mãe, eu estava...
— Fique calma, não faça esforço. — Falou-lhe carinhosamente. — Não te deixarei aqui sozinha. Nunca mais te deixarei sozinha, minha filha.
— Mãe, me perdoe, eu...queria dizer que...
— Não diga nada, eu sei, Paulinha, eu sei... Fique calma, vou ficar aqui com você, tá bom?.
Ana Paula permaneceu vários dias no hospital. Uma doença adquirida no mundo a debilitou bastante, mas, depois de 18 dias de internação, voltou para casa.
Sua vida mudou. Não era mais aquela Paula rebelde de outrora. Começou a estudar de novo, arrumou um emprego em uma loja de perfumes caros, começou a ajudar a mãe. Em pouco tempo, sua aparência também mudou. Seus cabelos brilhavam, sua pele estava corada e bonita, seu sorriso voltou. Paula tinha voltado do fundo do poço que, infelizmente, muitas meninas se jogam por não ouvirem o conselho das mães e dos pais. Paula reviveu. Nem todos que entram pelo caminho da desobediência têm essa chance, a chance de recomeçar. Hoje, passados cinco anos, Paula é casada, bem casada, tem dois filhos lindos. O marido não é o melhor homem do mundo, mas em nada se parece com o pai de Paula. Nunca ousou nem levantar a voz para ela. Era feliz.

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Sala de aula


A professora fez um grande círculo na sala, dispondo os alunos em roda. Era uma aula de conhecimentos gerais. Toda a turma, de 40 alunos, foi dividida em 5 grupos de 8 pessoas cada. A professora pediu, com um mês de antecedência, que todas as equipes pesquisassem assuntos variados em uma determinada enciclopédia especializada em assuntos para a juventude. O grande dia chegou. A equipe que tomasse a palavra para responder e errasse, pagava uma prenda. Acertando, devolvia a prenda à equipe que formulou a pergunta. Por isso as perguntas prometiam dificuldades.
— Vamos ver! A equipe sorteada para começar foi a equipe de... de... Ana Paula.
— Oh!! — Agita-se a turma. Começa a equipe de Ana Paula.
— Minha pergunta é: Por que pestanejamos? Quem responde?
Imediatamente a equipe da ruiva, chamada Jussara, levantou o dedo.
— Dá próxima vez, Ana, vê se faz uma pergunta mais difícil. É para manter sempre o globo ocular limpo. Acertei?
— Sim, acertou. — Concorda Ana.
— Eu não disseque era uma pergunta muito infantil? — Sussurra o gordinho George.
— Ah! E por que você não fez a sua? — Chateia-se Ana.
— Bem, a equipe da Ana vai ter de pagar uma prenda. Qual a prenda, Jussara, que eles vão pagar?
— Bem, professora, a prenda é o seguinte: todos da equipe da Ana vão pegar nos tornozelos e dar uma volta na sala. — Reclamações da equipe:
— Ah, eu não vou!
— Nem eu!
— Muito menos eu!
— Quem não fou perde pontos e sai do jogo. — Brinca a professora. Todos foram, para risada geral do resto da sala.
— A gente te pega, Jussara! — Promete Ana.
— Bem,agora a equipe da Jussara faz uma pergunta:
— Minha pergunta é simples e básica: por que os vaga-lumes emitem luz? Quem responde?
— Porque tem um foguinho no... no... na cauda! — Responde um.
— Porque engoliu uma pilha. — Pirraceia outro.
— Porque precisam enxergar o caminho. — Comenta outro.
— Nenhuma dessas respostas. Ninguém até hoje descobriu isso, nem os cientistas. — Declara Ana Paula, segura de sua resposta, olhando tranquilamente para Jussara com ar de vitória e sabor de vingança. — Acertei, senhorita Jussara?
— Droga! Sim, acertou!
A turma não via a hora de ver a Jussara e equipe pagando uma prenda feita pela Ana Paula.
— Bom, Jussara e equipe — começou Ana — a prenda de vocês consiste no seguinte: chama-se o “concerto dos gatos”. Vocês vão para o meio da sala. Todos juntos. Cada um é um gato. Quando eu der o sinal, vocês cantam qualquer música, sem ninguém combinar nada, só que com a língua dos gatos, miando. Pronto? Já!
Foi uma mialada geral e desafinada, para sorrisos alucinados da turma.
— Próxima equipe: Mariana, faça a pergunta. Mariana, com aquela expressão de apresentadora de televisão, séria, tempera a garganta e manda a pergunta: Qual a importância da clara para o pinto?
Houve uma gargalhada geral na sala, principalmente porque existia ali, uma aluna de nome Clara. Mariana, vermelha, tentou consertar a pergunta:
— Minha gente, é a clara do ovo! — Novas risadas.
— e o pinto? — quis saber João Paulo, estourando de risos.
— O pinto é o do teu...
— Silêncio! — Grita a professora. — Deixem a menina reformular a pergunta. Não quero mais interferências. Mas até a professora se esforçava para não rir. Ainda bem que a Mariana era daquele tipo que não esquentava, e até riu também. Reformulou a pergunta:
— A clara do ovo faz parte do pinto ou lhe serve de alimento?
— Ah! Agora sim, Mariana. Ficou legal.
— Quem responde? — Perguntou Mariana.
— É claro que faz parte do pinto. É de onde surge as asa. — Responde o Julinho Coração de Leão, apelido recebido por ser ele todo sério.
— Infelizmente, Julinho, você acaba de...
— Acaba de... — Manifesta-se a sala.
— Você acaba de... de... ERRAR!
— Uhhh!!!
— Paga prenda, prenda paga! — a sala manifesta-se em uníssono.
— Bem, equipe do Julinho, é uma prenda simples. Vocês vão formar uma banda, cada um será um instrumento musical. E com gestos e imitando os instrumentos vocês vão cantar uma música. Escolham a música e afinem os instrumentos.

Faz sessenta anos que essa competição aconteceu. Lembro-me dos detalhes porque os tenho guardado em minha velha agenda corroída dos anos. Eu sou a Jussara. E meu hábito era escrever em um pequeno diário tudo aquilo que me acontecia nos meus anos dourados. Naquela época, os jovens escreviam mais, amavam mais — não aquele amor que hoje confundem com ficar — a gente amava mesmo. A escola era rígida, havia nela muita disciplina, os alunos não eram santos, mas diferiam muito dos de hoje.
Ana Paula formou-se em jornalismo. Eu tornei-me professora universitária; Mariana não teve sorte: em viagem feita para a capital alagoana, infelizmente, foi atropelada por um motorista embriagado e veio a falecer muito novinha. Não foi possível realizar o sonho que ela tinha de ser advogada. Coisas da vida!
O gordinho George, que mencionei no início, virou gerente de banco e futuramente conseguiu um belíssimo emprego de auditor do tesouro nacional.
O Julinho Coração de Leão, bem, o Julinho... quer dizer, ele, ele é... como se diz?... ele é o pai de meus três filhos.

“Tudo vale a pena, se a alma não é pequena”

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A CRUZ DA CIGANA

— Margarida, nossos dia de cigano estão contado.
— Quais as nova?
— Arrumei trabaio. Vou trabaiá como caravaneiro.
— Caravaneiro? Como caravaneiro? — Interessa-se a esposa.
— Tropa de burros. Vou levar cargas de argodão e outras coisa no lombo dos burro pro o sertão... sertão nordestino.
— Nossa! Mas é muito longe! Isso é coisa de muitos dia de viage, Severino.
— Margarida, sei que é trabaio penoso, compricado, mas é trabaio. Mas o que vou recebê adispois vai dá pra mode nóis construir aquela nossa casinha que tanto nóis quer pra criar o Pedrinho e a Julinha. Com algumas viage dessas, lá está nóis em casa de tijolo.
Margarida pensou um pouco. Em passos lentos e coordenados, andou pela velha cabana cigana, viu os buracos do “telhado” remedados, o fogão feito de tijolos empilhados sapecando faíscas para tudo quanto era lado. Como gostaria de uma casa de verdade... Uma casa de telhado, uma cama boa para dormir, um fogão fixo feito de cimento que não lhe faiscasse no rosto nem lhe queimasse os braços.
Severino e Margarida se casaram no meio do mundo, como andarilhos que foram durante um bom tempo de vida cigana. Não sabiam de suas origens, apenas que eram de um povo que antes mesmo de o Brasil existir, eles já existiam lá pras bandas da Europa. Fatos relatam que os ciganos existiram desde tempos imemoriais, ates mesmo das civilizações ditas civilizadas. Povo de vida nômade, os ciganos representavam uma casta social que se caracterizava por não ter lugar fixo para viver. Severino e Margarida eram representantes desses povos e não tiveram padre nem igreja no casamento; o vestido de noiva resumiu-se a alguns trapos lavados de última hora. Sempre de vidas errantes, parando de lugar em lugar, não podiam se dar ao luxo de ambicionar cerimônias eclesiásticas. Agora ele, o Severino, queria sentar o prumo, estabelecer-se, fixar-se, criar família.
Estávamos no ano da graça de 1915 quando o Severino pegou sua primeira carrada de burros. Um total de 10 burros fortemente carregados de algodão, rapadura, algumas fazendas, pinga e alguns cachos de banana. Nas estradas de barro, abertas à foice e a facão, uma fila de burros, suados, fortes, em marcha de trote leve, descobria aos poucos pequenas povoações fincadas no meio das matas. Sempre que por uma dessas povoações ele passava, era bem recebido. Davam-lhe água, um cafezinho de vez em quando, às vezes um pedaço de bolo de mandioca; enfim, o interior sempre foi hospitaleiro, principalmente naquele começo de século, onde a vida corria de forma bem mais simples que a nossa atual. Em troca, em suas paradas rápidas, fazia o papel do correio, do jornaleiro, do homem das notícias. Numa época sem as grandes inovações tecnológicas, era comum o serviço desses viajantes para deixar informadas aquelas pequenas comunidades.
Ora, no começo do século, tudo era bem mais difícil. Uma simples viagem do Sudeste para o Nordeste era coisa de muitos e muitos dias. As notícias na década de 10 andavam à tartaruga e o Severino, como andarilho que fora e ainda o era, sempre fazia o papel do homem-notícia. Eis um dos motivos por que era sempre bem vindo. Não apenas isso, mas porque ele também era uma pessoa de muito carisma, sorriso fácil e gestos amigáveis. Não raras vezes e literalmente, trazia e levava cartas dos moradores espalhados pelo sertão.
O verão deu adeus ao inverno e assumiu o seu posto. No sertão, não se conhece primavera e outono, apenas verão e inverno. As águas, cada vez mais escassas, transformavam a paisagem nordestina num cenário de fogo. Vegetações antes de um verde esplendoroso, agora exibiam nuances de palha seca. Uma simples beata de cigarro era suficiente para levantar cortinas de fogo na mata. Barreiros, antes cheio d’água pela superfície, agora eram só desolação com seus torrões secos e quebradiços. Os bois deles se aproximam, e, saudosos daqueles barreiros onde podiam mergulhar até a metade do corpo e beber água com fartura, aguardam o próximo inverno, se sobreviverem à fome sertaneja. Calangos, em corridas loucas pelas estradas poeirentas, disputavam à tapa com outros da espécie os melhores e desprevenidos insetos. O carcará, no topo esquelético de uma árvore, olha desconfiado para a caravana de burros... É que um sitiante por ali, criador de muitas galinhas, anda de querer dar-lhe um fim. Motivo: sumiço exagerado de pintos novos. Nesse cenário abrasador, lá vem o Severino com sua 18ª carrada de burros. Suado, garganta em brasa, abanando-se com o velho chapéu. Mais um pouco e avista mais à frente, no sopé de uma serra, uma casinha simples fumando pelas telhas. Um preto velho sentado à porta, com um cigarro de palha o espera.
— Boa tarde, senhor! — Severino cumprimenta o velho cidadão; um cidadão escuro como as noites sem lua.
— Boa tarde, moço! — responde o cidadão levantando-se e tirando o chapéu em sinal de reverência, coisas do tempo antigo. Hoje as pessoas passam umas pelas outras e, se você não tiver cuidado, elas te atropelam. Coisas do tempo moderno.
— Uma aguinha aí, moço!?
— Apeie!
Severino ficou uma meia-hora naquele local trocando idéias com aquele moço descendente do Quilombo dos Palmares. Chamava-se Bento, o determinado cidadão. Homem com uma prole de 12 filhos em escadinha. O mais jovem com apenas um ano de idade e o mais velho com 14. Nessa época, a televisão ainda não existia por aquelas bandas. Era natural a assistência exagerada e, conseqüentemente, a prole se tornava exagerada também. As famílias primitivas quase sempre eram bastante numerosas e, com o tempo, viravam clãs.
Saiu daquela casa por volta das duas horas da tarde. Verificou a carga, conferiu as amarraduras, tirou água salobra de uma pequena cacimba, deu-a aos burros. Com um aceno, despede-se do preto velho. Toca para o sertão, mata adentro, em marcha lenta. No caminho brasento e poeirento, vai encontrando carcaças de bichos mortos pela seca, resquícios da época de fartura, da época do Inverno. Sobe uma ladeira, precisa tomar cuidado. Vez por outra um burro que empacar e leva umas reiadas para entender que burro é burro e não nasceu para ter vontades. Toca para o sertão... Pensa na mulher, em Margarida, que ficou em casa; agora, uma casa de tijolos, telhado bom, um fogão grande feito de cimento que não expele faíscas no rosto da pobre mulher. Nos caminhos tortuosos com que já se acostumara a passar, ia construindo, em reflexões, a idéia de estabelecer-se, de criar raízes em sua terra; começar uma vendinha ou outra coisa qualquer para poder ficar perto de Margarida e dos filhos. Queria parar aquelas viagens que o deixavam ausente por tanto tempo. Os filhos andavam de reclamar a ausência dele, a mulher também, até porque estava grávida do quarto filho do Severino.  Não tivesse cuidado, os filhos cresceriam e ele nem os conheceria. Era preciso fixar-se. Muitos existem que, por excesso de trabalho, esquecem da família. O tempo passa e eles nem se dão conta de que os filhos cresceram, deixaram suas casas, e alçaram vôo. E a vida volta a ser como era antes: sempre monótona, a casa em silêncio, mas com um diferencial: estão velhos, casados com muitos remédios e a vida prestes a se esvair. Quando muito se tem sorte, recebem esporadicamente a visita dos netos e dos filhos... quando muito se tem sorte.
Ao longo desse tempo de viagens, Severino fizera muitas amizades pelo sertão. Sempre que chegava a algum lugar, os moradores das pequenas vilas e povoados do começo do século faziam questão que ele comesse dum pedaço de bolo, tomasse dum cafezinho quente feito na hora ou bebesse uma lapada de pinga do sertão. Nesse tempo, as pingas não eram produzidas nas fazendas longe do fisco, ou pelo menos não se tinha disso conhecimento.  O Severino era por todos querido. Era uma daquelas almas que mesmo sem estudo e sem condições financeiras abastadas, a todos agradava.
Enfim, depois de alguns dias, tendo entregado a mercadoria da 18ª expedição e recebido todo o dinheiro, dirige-se a uma feira ali perto.  A mulher reclamava a ausência de uma cabra leiteira pro mode, segundo ela, ajudar os pirralhos no crescimento, e agora que mais um apareceria, uma cabra leiteira fazia-se mister.
Uma feira era coisa curiosa no sertão. Ganhava ares de festa. A ela, afluía todo tipo de gente. Tinha o retratista e suas fotos lambe-lambe; o vendedor de peças de fazenda pro mode as caboca ficarem bunita; tinham as barracas. As barracas vendiam de tudo, mas as mais assediadas eram aquelas com gêneros alimentícios e bebedícios. Nelas, os matutos discorriam sobre causos: histórias malassombradas, gente que virava bicho, lobisomens em noites de Lua Cheia; mulheres que viravam bestas-feras por terem batido nas mães e corriam campo nas madrugadas dando grandes e terríveis gritos.
Entre uma golada e outra, os matutos mais espertos sapecavam a língua no vigário, que só queria o dinheiro da comunidade; desciam a ripa no político local — quanto a isso, faziam à boca miúda, caso vazasse o falatório, gente perdia a língua literalmente.  Quem poderia esquecer do coroné que mandara decapitar os pertences do Herculano por ter ofendido uma menina? Ora, fato tão espetaculoso e inescrupuloso jamais poderia ser esquecido. Era preciso ter cuidado com a língua.
Os matutos eram alegres, felizes, apesar de exibirem sorrisos sem dentes. Sua grandessíssima maioria era formada por analfabetos, mas guardavam na memória a hierarquia cultural oriunda dos antigos. Infelizmente, muitas e ricas histórias da tradição cultural se perderam para sempre na poeira do tempo, por falta de um escrevedor. Por falta do espírito cultural que nunca norteou as mentes dos povos colonizadores do Brasil.
Severino chegou à feira de animais, os bolsos cheios de dinheiro.
— Em quanto qui fica uma cabrinha dessas, moço?
— Cinqüenta minréis, Severino.
— Ochente, e cuma qui tu sabe do meu nome? — surpreende-se.
— Mais quem num ti conhece, ôme? Se aprochegue por aqui qui hoje nóis faiz negóço. Faço um precinho bão pro sinhor.
Depois de uma pechincha pra cá, uma pechincha pra lá, enfim, Severino compra uma cabrinha bonita, tetuda, malhada. Margarida, com certeza, ficará feliz com a malhada.
— Quanto qui tu qués no bode? Agora eu me arretei.
— Vige, o cabra tá com dinhero. — Alegra-se o vendedor.
— Com dinhero dos oto. Mais tenho aqui um bocadinho que dá pro mode comprá um. Diz logo antes que eu me arrependa.
— O mermo preço da cabritinha.
— Fechado.
Severino sacou do dinheiro, pagou e disse até mais ver. Partiria logo nas primeiras horas do dia seguinte; não via a hora de ver o rosto feliz de Margarida e também os filhos mais novos querendo montar na cabrinha.
O dia amanheceu belo.  Às primeiras horas da manhã, o sol ainda se espreguiçando de uma noite de doze horas, pássaros afinando as cordas vocais, árvores chacoalhando suas folhas ao sabor do vento, lá vai o Severino, lá vem o Severino e sua tropa de agora doze animais. Lá vem o Severino, lá vai o Severino, vem apressado, vai apressado, em trote. Burros descarregados, pernas descansadas, lá vem o Severino. Tem ânsia de chegar, chegar a casa com os presentes: uma cabrinha leiteira e um bode. Deseja olhar nos olhos de Margarida, olhar a felicidade que brilhará naqueles olhos de cigana. Futuramente, nasceriam cabrinhas e bodinhos. Cabrinhas e bodinhos que, com o tempo, transformar-se-iam novamente em cabras adultas, bodes adultos e gerariam mais cabrinhas e mais bodinhos. No correr de poucos anos teria uma verdadeira criação. Compraria um pedaço de chão, pro mode colocar os animais. Venderia leite. Queria chegar logo; os filhos ficariam felizes, ele também ficaria feliz na felicidade da família. Margarida sorriria com aqueles dentes perfeitos que a natureza, por despeito, dera a ela.
Mas, lá vem o Severino, lá vai o Severino. O ex-cigano Severino e sua tropa de agora doze bichos já vem, já vai. Vai subindo e descendo as terras de barro; de quando em vez, olha a corretinha de uma cruz dada pela mulher. A cruz da cigana, como gostava de chamar desde que se converteu ao cristianismo. Passa por um: “Como vai, Severino”? Passa por outro: “bom dia, Severino; boa tarde, Severino; boa noite, Severino”. Severino vem descendo a Serra da Serpente e com suas mil curvas. Chega a ficar tonto com tantas curvas. A Serra da Serpente é muito íngreme, urge ter cuidado. Se a cabrinha leiteira e o bode despencarem daquela altura, ele não vai ver os olhos de felicidade de Margarida e o desejo dos meninos de montar na cabrinha. Reduz a velocidade, retira um pedaço de rapadura da mochila. Com uma mão, enfia a rapadura na boca; com a outra, lança goela abaixo um punhado de farinha. Levanta a vista, o dia vai escurecendo aos poucos, melhor procurar um local para apear.
As estrelas no céu são brilhantes. Têm de várias cores: azuis jovens, amarelas adultas, vermelhas velhas. Os grilos fazem serenata de uma nota só, uma coruja passa emitindo seu grunhido noturno, enquanto o céu se ponteia de mais estrelas. Severino não entende por que que o céu é azul, não sabe por que as estrelas são de diferentes cores e de variados tamanhos. Ele não entende por que os grilos cantam, por que os pirilampos têm luz própria; o Severino não sabe por quê... por quê... por quê... A única coisa que Severino sabe de verdade é que quer ir para casa, ver o sorriso de Margarida e de seus filhos com a sua chegada, principalmente porque a pretendida cabrinha leiteira, há tanto tempo um sonho de Margarida, ele finalmente conseguira comprar e, de quebra, levava até um bode. Severino era gente simples, de gestos simples, atitudes simples, mas de sensibilidade aguçada.
O Severino adormece de repente, a noite faz-se mais profunda, os grilos se calam, as estrelas não mais brilham, a coruja silenciou seu canto e a tropa de animais emudeceu seus ruídos.
Tudo se transformou na mais terrível escuridão. Severino dorme, dorme um sono profundo. Não sente mais o cheiro das coisas, não ouve mais os barulhos da noite, não vê mais as estrelas azuis, e amarelas, e vermelhas. Severino está dormindo... Nessa noite, ele não sonharia com a Margarida sorrindo, os olhos cheios de alegria com a chegada dele; não sonharia com o terreno que compraria para gerar uma criação de cabras. A última visão de Severino antes de dormir foi uma estrela de fogo saída do meio da escuridão. A última coisa que o Severino ouviu foi um barulho seco, rápido. A última coisa que o Severino sentiu foi um escurecimento profundo que o fez dormir... Apagou-se de repente, adormeceu de repente, de repente, profundamente...

* * * *


— Aonde o senhor vai pai? — quer saber o Arnaldo, garoto de cinco anos de idade.
— Enfeitar com flores A Cruz da Cigana, meu filho, venha comigo. É bom que você vá se acostumando, porque quando eu morrer, você é que vai ficar responsável de todos os anos ir À Cruz da Cigana, limpá-la e colocar nela flores.
— Por quê? — Interessa-se o menino.
— Aquela cruz, meu filho, é sagrada. Ali morreu um inocente. Conta o meu bisavô, que por essas bandas há muito tempo, andava um senhor caravaneiro muito respeitado. Dizia que era um homem simples, mas com um coração do tamanho do mundo. A todos ajudava, a todos era solícito. E os mais velhos contam que foi assassinado enquanto repousava de uma de suas viagens. Foi morto covardemente e roubaram-lhe todo o dinheiro que o pobre tinha arrecadado com a venda da mercadoria. Por essas bandas, como todos o conheciam, mas ninguém sabia de onde ele era, acharam por bem levantar a cruz em sua homenagem. Todos os anos muitas senhoras da região vão até aquela cruz e fazem para o caravaneiro assassinado no tempo antigo muitas preces. Rezam pela alma do falecido.
— Mas por que a cruz se chama A Cruz da Cigana? — quer saber o menino Arnaldo, levemente emocionado.
— No local do assassinato, encontraram uma correntinha com uma cruz no pescoço da vítima e nela, colada, uma pequena folhinha que dizia: Leva essa cruz para que Deus possa te abençoar nos teus caminhos. Volta pra mim. Tua cigana. Assim, todos resolveram chamar a cruz que lá está de...

A CRUZ DA CIGANA.


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A MOSCA PIGUNÇA


Não mostrem esse conto para um especialista em moscologia, por favor. Ele vai dizer que pirei. O caso é sério! Era uma terça-feira. Dia estranho para se beber uma cerveja, mas, resolvi tomar uma. Antes, pedi uma destilada. O garçon, meio estranho, trouxe a derivada da cana e uma cerveja. Colocou as duas sobre a mesa. Olhei para a televisão ligada por alguns instantes, o suficiente para ver uma mosca sentada na borda do copo da envenenada.  Com um gesto brusco, tentei afugentar a Aérea.  Meu dedo tocou no copo e lá se foi o conteúdo alcoólico... Só por desaforo, pedi outra dose. Novamente olhei para a televisão e concentrei-me na política linda de nosso país. Quando fui pegar o copo da destilada, lá estava a mosca bebendo de novo. Mosca filha-de-uma-égua! Ameacei dar-lhe uma tapa, mas lembrei do copo que se foi anteriormente. Melhor deixar essa Excomungada beber à vontade... É. Foi exatamente isso que fiz: deixei a Miserável encher a cara e fiquei olhando... Queria saber se a Alada ficava bêbada. O noticiário de Severino veio ao ar. Mas eu queria ver aquela maldiçoada trôpega, bêbada.  Ela olhava pra mim, e eu olhava pra ela. “Eu te pego!” — Pensei. Aí a televisão veio com a história do Maluf. Levantei a vista. Mas não podia descuidar da Cachaceira — que continava bebendo, entre saltos aéreos e pequenas sugadas.  Maluf foi acusado mesmo de quê? Perdi a notícia inédita. A Ancestral, nem aí! Sugando devagarzinho a água-que-pinto-não-bebe. “Ela há de ficar bêbada e cair por terra!”, eis o meu desejo. Continuei na observação. Ela lá! Tô nem aí! Tô nem aí! Aí me mordi. Armei o dedo-maior-de-todos, engatei, calculei, verifiquei a mira, aproximei o dedo da Esvoaçante e... Dei uma catapultada, ou uma dedada potente. O copo foi à lona qual Tyson lá nos ringues estadunidenses. “Puta que pariu! Mosca filha-da-puta! Errei a Condenada de novo, aquela peste não merecia estar na Arca de Noé. Que critérios Noé usou na escolha dos bichos que haveriam de se salvar do           Dilúvio? Por que será que ele resolveu colocar um casal de mosca na Arca? Nunca entendi essa questão tão científica.
— Garçon! — gritei — traz outra cachaça. O garçon trouxe. Eu queria desesperadamente ver aquela mosca pigunça voltar e tomar a última dose. Era muita safadeza eu, criado à imagem e semelhança de Deus, perder para a vagabunda de uma mosca . “E não é que ela voltou...”?
Sentou refesteladamente na borda do copo. Mas com um diferencial: ela voava meio zonza. O programa da televisão acabou, o dono do bar colocou um DVD, e eu olhando para a mosca. “Ela cai logo logo” — raciocinei. Eu estava na 2ª cerveja, e ela, pelos meus cálculos, tomara umas dez doses da derivana da cana. De repente, ela começou a pular desesperadamente na borda do copo entre pequenos vôos descoordenados. “Agora tu se lasca comigo!”— pensei. Aproximei a minha mão dela. Ela não reagiu. Concluí: “Lascou-se!” É hora da vingança pelos dois copos que se foram. Armei o dedo-maior-de-todos de novo. Mirei, calculei, convoquei potência no dedo... “Diga adeus à vida, Famigerada”. Tasquei a dedada.
Era uma vez uma mosca pigunça...
O dono do bar ligou de novo a televisão no noticiário. Apareceu outra vez o Severino e compreendi que cometi uma grande injustiça com a pobre da mosca, pois ela me roubou apenas dois copos de cachaça em um restaurante barato.

Erisvaldo Vieira
19/09/2005.

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